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Franco Nogueira: primeiro livro em estado novo

Nem sempre as procuro, mas por vezes edições raras vêm ter comigo. Ignoro porquê. Talvez por um sentido inato dos livros: sabem que costumo tratá-los bem. E a primeira garantia disso é lê-los.
Há dias, encontrei um desses exemplares que merecem ser acarinhados: é o Jornal de Crítica Literária, de Franco Nogueira. Edição impecável, como se tivesse saído há pouco do prelo, ainda com as 317 páginas por abrir. Lançada em 1954 pela Livraria Portugália, há muito extinta.
Poucos saberão que, antes de enveredar pela carreira diplomática e muito antes de se tornar ministro dos Negócios Estrangeiros durante quase toda a década de 60, Alberto Franco Nogueira (1918-1993) foi crítico literário, com largas dezenas de textos publicados na imprensa nacional e regional sobre os mais diversos escritores portugueses - tanto prosadores como poetas. Com ênfase para autores seus contemporâneos.
Comecei por abrir as páginas deste exemplar com um corta-papéis, à semelhança do que fazia o meu pai: tarefa manual que aprendi em criança, no escritório lá de casa.
Espreito uma página sem escolha prévia.
Tropeço neste parágrafo: «Existem certos nomes a que o acaso não permitiu mais do que uma alusão episódica. Alguns ocupam, no entanto, um lugar credor de mais ampla referência. Penso, sobretudo, em Alves Redol e Vergílio Ferreira.»
Depois, neste: «Aquilino Ribeiro é o escritor vigoroso da novela populista, na sua feição picaresca e na sua força peninsular. Ferreira de Castro é o humanitarismo social na literatura. Joaquim Paço d'Arcos é o cronista dos ambientes mundanos e cosmopolitas. Em Assis Esperança encontramos o dramatismo e a sátira de costumes.»
Numa entrevista perto do fim da vida, Franco Nogueira confessou que esta actividade de crítico literário, exercida sobretudo como passatempo entre 1943 e 1953, foi das que mais gostou. Pena tê-la suspendido por um prazo que se revelou eterno mal iniciou a carreira diplomática, em 1955, como cônsul-geral em Londres.
Não reatou a paixão antiga. Creio, aliás, que nunca reeditou esta sua primeira obra - que hoje nos permite conhecer com minúcia quais eram os autores então mais em voga e aqueles que souberam resistir ao teste do tempo.
Alguns mereciam ser revalorizados: destaco o moçambicano Castro Soromenho, que viria a morrer no exílio brasileiro, em 1968. Era amigo pessoal de Nogueira, que não esconde o apreço pela obra deste autor africanista injustamente esquecido. Romances como Terra Morta e A Chaga bastam para o consagrar entre os melhores da sua época.
Este Jornal de Crítica Literária, agora na minha posse, mudou de semblante. Enfim inaugurado após quase sete décadas, deixou de permanecer em estado novo. Não é para manter imobilizado numa estante: é para ler.
Destaco outro trecho, centrado na comparação entre Camilo Castelo Branco e Eça de Queiroz:
«Em Eça de Queiroz, o acto criador é essencialmente expressão formal; em Camilo esse acto é acima de tudo expressão de sentimentos; e assim, enquanto o primeiro deforma pela sátira, o segundo deforma pelo drama. (...) Significa isto que o romance de Eça vive sobretudo das suas linhas formais exteriores: técnica, estilo, atracção do assunto, sátira, crítica mordaz. Ao contrário, a novela de Camilo existe principalmente pelo seu conteúdo: intensidade emotiva, luta de sentimentos, drama psicológico, construção e desenho das figuras humanas.»
Franco Nogueira era crítico severo, sem esbanjar louvaminhas.
Seguem dois exemplos.
Sobre Volfrâmio (1943), de Aquilino:
«É uma construção pesada e lenta como trabalho novelístico: a aventura mineira ensombra artificialmente os meios e os acontecimentos.»
Sobre A Lã e a Neve (1947), de Ferreira de Castro:
«Não se nos impõe pelo estilo - o estilo de Ferreira de Castro é pobre, monótono, incolor e impessoal - nem pela construção.»
Enquanto elogiava, com reservas dignas de nota, obras de Carlos de Oliveira (Casa na Duna, 1943; Uma Abelha na Chuva, 1953) e Fernando Namora (Casa da Malta, 1945; Retalhos da Vida de um Médico, 1949).
Enfim, uma inesperada aquisição para a minha biblioteca.
Custou-me dez euros na Livraria Barata. Praticamente o preço de duas edições do Expresso.

