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Delito de Opinião

Ler (13)

No centenário de Agustina (1922-2022)

Pedro Correia, 15.10.22

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Faz hoje cem anos, nascia Agustina Bessa-Luís. Uma das nossas mais importantes prosadoras do século XX - com Aquilino Ribeiro, José Rodrigues Miguéis, Miguel Torga, Vergílio Ferreira, José Saramago e António Lobo Antunes.

Há exactamente dez anos, vivia ela ainda, escrevi aqui umas linhas indignadas com a forma como o seu espólio literário estava a ser tratado. Reclamei contra a editora que à época a representava - sua chancela durante décadas, que mudara de proprietário pouco antes - e considerei indigno da grande autora esse tratamento que a afastava de antigos e novos leitores: «Não há títulos seus em livros de bolso, a preços acessíveis. E, muito pior, a assumida divulgação das suas obras completas não passou afinal de um projecto abortado.»

Agustina morreu em Junho de 2019, aos 96 anos, sabendo que a sua obra voltara a ser acarinhada. Com nova editora - a Relógio d'Água, de Francisco Vale - e sua filha, Mónica Baldaque, cuidando com esmero do legado da mãe. Nos anos mais recentes, vários títulos há muito fora do mercado regressaram às livrarias, em versões valorizadas por impecável grafismo e capas apelativas. E, mais importante ainda, com notáveis prefácios escritos de propósito para a ocasião. Aliás até já originaram uma obra adicional: O Livro dos Prefácios à Obra de Agustina Bessa-Luís (2022). Se pudesse recomendar um, que serve de admirável introdução à leitura do conjunto dos seus romances, sugeria o que António Barreto (duriense, como ela) escreveu para As Pessoas Felizes

As obras vêm ressurgindo a um ritmo regular - não apenas as mais consagradas, desde logo esse marco do romance português que é A Sibila - mas outras que já só estavam disponíveis em bibliotecas, públicas e privadas. Aguardo ainda, por exemplo, a reedição de A Crónica do Cruzado OSB (1976). 

 

Mas o que hoje quero sublinhar é o pulsar da vida que se extrai das páginas redigidas por Agustina. Visão, audição, olfacto, paladar e tacto estão sempre presentes - seja em paisagens campestres, seja em quadros de matriz urbana; seja em cenas contemporâneas, seja em digressões pelo passado, mais próximo ou mais longínquo. 

As suas personagens desfrutam sem remorsos dos prazeres da mesa - facto raro na literatura portuguesa.

Basta ler este delicioso excerto de Fanny Owen

«Faziam-se bolachas de amêndoa e de cidrão, assim como refrescos de violeta e de bergamota. Servia-se peru à Cardeal, colorido com cascas de camarões pisados e assado no espeto, receita que só era ainda aviada nas cozinhas de Mesão Frio, assim como a empada de lombo de lebre, assim como leitão de javali com molho picante.»

Ou este, de Os Incuráveis

«Na lareira havia sempre essas caldas que se remexem com uma gadanha, se fazem correr do alto com uma colher de pau e esperam a massa das marmeladas ou de chila; ou é a canja que recoze cheia de olha amarela, ou o caldo de cinza onde se banham as passas, ou o cozimento de vinho do Porto onde se temperam fiambres.»

Ou este ainda, de As Pessoas Felizes

«A casa dos Torri era, senão pantagruélica, pelo menos duma abundância flamenga. Os almoços de domingo impressionavam pela fartura, e Góia Torri constituía um espectáculo a comer grandes quantidades de trutas, perdizes, lebres e vitela assada. Havia quem se introduzisse na sala de jantar com o pretexto de dar um recado, só para a ver servir-se de feijão-branco com orelheira.»

Sem as raquíticas côdeas de pão omnipresentes em dezenas de obras dos seus confrades das letras. 

 

Tenho a certeza que Agustina gostaria de ser evocada assim, neste dia do seu centésimo aniversário: como alguém que fez da literatura uma celebração da vida.

O que é outra forma de enaltecer a arte.

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