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Delito de Opinião

Lembrei-me de Gil Vicente

Paulo Sousa, 24.01.23

O Salão Paroquial da minha terra foi inaugurado há mais de 80 anos. Muito antes de alguém ter inventado a expressão multiusos, já o conceito ali funcionava há muito. O teatro foi sempre uma das principais actividades desenvolvidas e desde há várias gerações que as grandes noites de teatro fazem parte da nossa memória colectiva.

SalaoParoquial.JPG

Foto Fernanda Horta

Soube pelos mais antigos que numa certa noite de estreia, com casa cheia, durante a peça um actor empurrou um punhal de lâmina retráctil contra o abdómen de outro que, tal e qual como se tivesse sido mesmo esfaqueado, soltou um grito agoniante e, com as roupas sujas de sangue fresco, caiu no palco. Uma das faces do punhal estava limpa e a outra suja de vermelho. A face visível quando o punhal avança é a limpa e o actor que faz de assassino roda o punhal quando o encosta à barriga da vítima, de forma que no movimento seguinte o público a veja ensanguentada. E nem actores profissionais poderiam emprestar mais realidade àquela sequência. Todos os olhos da plateia estão esbugalhados, o silêncio é total e o espírito dos mais simples e susceptíveis, até transtornado.

Numa cena posterior, o assassino é acusado do crime e, com toda a convicção nega que alguma vez o tivesse feito.

Se até aqui isto poderia ser um relato de uma peça de teatro amador, numa aldeia no longínquo Portugal dos anos 60, o que aconteceu em seguida fez com que durante muitos anos depois, todo o episódio fosse contado e recontado, com umas gargalhadas pelo meio.

Na senda de muitos relatos escutados por aí, o Zeca das Cabras já tinha decidido que da próxima vez que houvesse teatro, teria de gastar uns cobres e lá ir ver como é que isso era afinal. Depois de uma lavagem de cara e de mãos, e da troca das botas com que pastorava o seu gado, o Zeca ali estava, no lado direito da plateia, o último de uma fila de cadeiras. Quando assistiu àquele “crime”, quem estava ao seu lado na plateia reparou que, no momento da facada, ele levantou-se num reflexo empurrando para trás a cadeira com a contracurva dos joelhos. Após o choque inicial, todo ele, muito direito, e tenso, com os braços esticados e com os punhos cerrados a apontar para o chão, ficou a olhar para a restante plateia, incrédulo com o que tinha visto, e acima de tudo com o silêncio dos demais. Como é que podia toda a gente ali estar impávida e serena depois de terem assistido ao filho do moleiro a dar uma facada ao Fanan?

Os minutos seguintes passou-os de pé com as omoplatas encostadas à parede, enquanto varria com o olhar, ora a plateia, ora o palco.

Quando o Zeca ouviu o filho do moleiro a negar aquilo que tinha acontecido à vista de todos, ele não se conteve mais e teve de usar da palavra. Usar da palavra é pouco para o berreiro que se seguiu. O Zeca abriu as goelas e, de dedo em riste, desmascarou-o ali mesmo. Não irei recriar o diálogo porque aquilo que sei já foi filtrado por muitas versões ouvidas e recontadas, além de que envolveu algum vernáculo pesado. Parte do que foi dito foi dirigido ao público. Como é que a polis, a comunidade, poderia ficar indiferente perante um crime de sangue? Incrédulo e revoltado, a todos desmascarou, e o filho do moleiro ficou logo ali avisado que quando se encontrassem na rua, iria ter de se entender com ele.

Várias pessoas tentaram acalmar o Zeca, explicando-lhe que aquilo era tudo a fingir, que o filho do moleiro não era assassino e que o Fanan depois da peça viria cá fora conversar com ele e ainda lhe pagava um copo de vinho na tasca que ficava a poucas casas de distância do Salão Paroquial. E assim lá se acalmou o Zeca.

Aos olhos de hoje, na terceira década do século XXI, podemo-nos rir da inocência e da simplicidade do Zeca das Cabras, que não entendeu que o que se passa no palco é tudo uma representação. Essa é a essência das arte cénicas, do Teatro e do Cinema. Ali conta-se uma história, dá-se corpo às personagens a quem os actores apenas emprestam a voz, a imagem, os movimentos e, se forem mesmo bons, até os sentimentos.

Recordei-me deste episódio por ocasião do assunto que anda por aí aos saltos e até já foi aqui trazido pelo nosso colega JPT.

Parece que a actriz e performer travesti Keyla Brasil conquistou os seus minutos de fama quando interrompeu uma peça de teatro, acusando o actor de ser um transfake, uma vez que sendo cisgénero representava ali alguém que era transexual.

Sendo levada a sério, esta linha de raciocínio condenará irremediavelmente o Teatro. Poderia alguma vez Chaplin dar corpo ao Grande Ditador sem que estivesse à frente de um regime autoritário? Onde se poderão recrutar actrizes para a cena inicial das três bruxas em Macbeth? Apenas no governo de António Costa? E quem poderá representar Macbeth? Apenas um assassino? Esta obra de Shakespeare só poderá ser representada durante uma saída precária de um condenado, ou será necessário recorrer à colaboração do Ministério Público? E como é que mais alguma vez se irá arranjar quem queira dar corpo ao Romeu e Julieta? Angariam-se interessados na linha SOS Suicídio? Quem é que poderá ter o papel principal na peça do Fantasma da Ópera? E em Édipo Rei? Terá o actor de ser recrutado no sofá de um psicanalista?

É certo que, mesmo conseguindo arrancar umas palmas, não serão estes palermas que irão ditar o fim desta arte maior, mas todos eles, e nos mesmos rigorosos critérios que agora defendem, reúnem condições para representar o mítico personagem do Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, o Joane, o parvo.

 

PS: Os nomes dos envolvidos no episódio passado no Salão Paroquial são fictícios.

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