Lápis L-Azuli
Hoje lemos: José Luis Borges, "Ficções".
Passagem a L-Azular: “Funes discernia continuamente os calmos avanços da corrupção, das cáries, do cansaço. Podia sentir o progresso da morte, da umidade. Era ele o espectador solitário e lúcido de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente preciso. Babilônia, Londres e Nova York dominaram a imaginação dos homens com feroz esplendor; ninguém, nas suas torres lotadas ou nas suas avenidas urgentes, sentiu o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como aquela que dia e noite convergia para o infeliz Ireneo, no seu pobre subúrbio sul-americano. Era muito difícil para ele dormir. Dormir é uma distração do mundo; Funes, de costas no catre, nas sombras, imaginava cada fresta e cada moldura das casas precisas que o cercavam. (Repito que a menos importante de suas memórias era mais detalhada e mais vívida do que nossa percepção de gozo ou tormento físico.) A leste, num trecho não bloqueado, havia casas novas e desconhecidas. Funes imaginou-as negras, compactas, feitas de escuridão homogênea; naquela direção virou o rosto para dormir. Costumava também imaginar-se no fundo do rio balançando, anulado pela correnteza."
É intolerável imaginar o inimaginável, principalmente para quem nunca conheceu o verdadeiro sofrimento e para quem o tormento dos outros não passa de ficção. "Dormir é uma distracção do mundo", tantas vezes a única para quem pode e um inalcançável graal para quem procura, a miragem da paz que poucos conseguem alcançar.
(Imagem Google)