Kundera e o Lápis
jpt, 06.08.23
(Um postal para o simpático grupo-FB "Mostra o que lês...", que já aqui referira)
Mostro aqui a aplicação (app) que uso para organizar as leituras.
Não sou necrófilo mas é-me recorrente na morte de alguns autores ir (re)lê-los, alguns trechos ou mesmo livros, queridos ou pendentes. Agora é com Kundera, do qual há décadas abandonara este "A Imortalidade". O autor ficou célebre com o magnífico "A Insustentável Leveza do Ser", que eu lera ainda nos 80s - e sempre afiancei que os regimes comunistas tinham caído porque não resistiram àquelas extraordinárias páginas em que o checoslovaco Kundera apresentava "o comunismo como kitsch"... (e ainda nem se imaginava que aquilo iria desabar tão em breve)! Pois, ele não é o escritor das tramas bem delineadas, sob prosa escorreita, a história que se "lê bem". E que satisfaz.
Mas adiante, porque trago o livro para falar da tal app para livros: o Lápis. Sigo a páginas tantas deste livro (capa horrível mas tradução - da versão francesa - do consagrado Miguel Serras Pereira) e dou com (mais) este sublinhado de trecho tão certeiro. E tão actual, tão vizinho. Perderá ao ser citado, amputado da sua envolvência textual. Mas ainda assim deixo-o aqui, para quem tenha paciência e assim se possa interessar pela obra - e peço a indulgência dos que se enfastiam com postais longos ou que consideram ser este molde de postal desajustado a este grupo. Mas isto é uma (quase) página que vale um livro:
"No nosso mundo em que todos os dias aparecem cada vez mais caras cada vez mais parecidas umas com as outras, não é fácil para um homem a tarefa de querer confirmar a originalidade do seu eu e convencer-se da sua inimitável unicidade. Há dois métodos para cultivar a unicidade do eu: o método aditivo e o método subtractivo. Agnés subtrai do seu eu tudo o que é exterior e de empréstimo, para se aproximar assim da sua pura essência (correndo o risco de chegar ao zero, através dessas subtracções sucessivas). O método de Laura é exactamente o inverso: para tornar o seu eu mais visível, mais fácil de captar, para lhe dar mais espessura, acrescenta-lhe sem parar novos atributos, com os quais tenta identificar-se (correndo o risco de perder a essência do eu, sob a camada desses atributos adicionados). [...]
O método aditivo é inteiramente satisfatório quando se acrescenta ao eu um cão, uma gata, o porco assado, o amor pelo mar ou pelos duches frios. As coisas tornam-se menos idílicas quando se decide acrescentar ao eu a paixão pelo comunismo, da pátria, de Mussolini, da Igreja Católica, do ateísmo, do fascismo, ou do antifascismo. Nos dois casos, o método continua a ser exactamente o mesmo: aquele que defende tenazmente a superioridade dos gatos sobre os outros animais faz, essencialmente, a mesma coisa que aquele que proclama Mussolini único salvador da Itália: enaltece um atributo do seu eu e esforça-se ao máximo para que esse atributo (uma gata ou Mussolini) seja reconhecido e amado por todos os que o rodeiam.
Tal é o estranho paradoxo de que são vítimas todos os que recorrem ao método aditivo para cultivarem o seu eu: esforçam-se por adicionar para criarem um eu inimitavelmente único, mas como se tornam ao mesmo tempo propagandistas dos atributos adicionados, fazem tudo para que um máximo de outras pessoas se lhes assemelhem; e assim a unicidade do seu eu (tão laboriosamente conquistada) em breve se esvai." (103-104).
Em suma, Viva a App Lápis! Ou, para ser mais actual, Adoro Lápis.