Justiça, para que te quero?
Desde Agosto de 2019 que venho contando a história de uma empresa que foi feita insolver por assalto ilegal do Fisco, com base em acusações delirantes. Fi-lo aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
Ler tudo isto é uma grande estopada, que todavia empalideceria se algum masoquista se lembrasse de compulsar as centenas e centenas de páginas que contam em burocratês e juridiquês esta penosa história. Não apenas as do processo de insolvência propriamente dito mas também as dos funcionários fiscais e judiciais, agentes de execução e insolvência, dos bancos, advogados (vários, no âmbito criminal, fiscal e de diligências sortidas, para cada um dos gerentes ou sócios envolvidos), sindicato, credores e Segurança Social – peço desculpa se me estou a esquecer de alguém.
O caso é o de uma empresa que insolveu em Julho de 2019 e o seu edifício e bens foram à praça em Dezembro do mesmo ano, tendo sido adjudicados a um licitante (único, ao que sei) que veio a pagar em Julho de 2022.
Ai que alívio, se já há dinheiro e até não é tão pouco agora é só pagar aos antigos trabalhadores as indemnizações, dado que são credores privilegiados, aos garantidos e o que sobra, que ainda é bastante, ratear pelos restantes credores.
Simples, não é? Que nada, caro leitor, esqueça a lógica e o senso, que valores mais altos se alevantam. Já lá vou, mas entretanto abro um parêntesis para me penitenciar por, num dos textos lincados acima, ter dito: E o gerente da empresa, para quem todas as dívidas fiscais reverteram, vê agora com indisfarçável gosto reconhecido que era talvez um pouco demais ser responsável pelo pagamento de impostos em falta que tinham o vício insanável de não existirem.
É que a decisão definitiva que reconhecia que as dívidas fiscais eram afinal inexistentes implicava (julgava eu, na minha ingenuidade) a anulação oficiosa da reversão delas para mim: se a dívida não existe como é que pode passar para outros? Não: foi preciso pôr uma acção judicial. A qual veio a merecer uma sentença em 26 de Abril passado segundo a qual, ao cabo de 19 páginas, se decreta que fico isento de pagar o que não era devido. O Fisco terá, parece, de me restituir umas custas ou lá o que é mas entretanto, junto com os honorários do advogado, já paguei o IVA respectivo, que as autoridades fiscais são inimputáveis mas eu não.
Voltando à vaca fria: soube em Outubro do ano passado que o administrador da insolvência requereu ao juiz autorização para pagar aos trabalhadores. E, rebrilhante de satisfação, logo telefonei à minha antiga braço direito para, reivindicando que me pagasse o café, a informar que ia receber uma prenda (35.000 Euros) antes do Natal. Parece que ela não gastou demasias em prendas por conta da benesse, e fez bem porque até à data ninguém recebeu um cêntimo.
Por que razão não tem o administrador da insolvência poderes, sem autorização do juiz, para pagar a credores privilegiados quando tal iniciativa não pode prejudicar os restantes; por que motivo o juiz não despacha quando, na minha insondável ignorância dos arcanos processuais, uma palavra (“concordo”) bastaria; por que motivo todo este processo, e os milhares que deve haver iguais, fariam Kafka reescrever a sua famosa obra por não ser suficientemente retorcida; como pode o legislador estabelecer um regime falimentar tão absurdamente estúpido, e uma Autoridade Tributária tão claramente daninha, sem que o tempo a passar já tenha reclamado, ao menos, retoques nesta macaqueação do Estado de Direito: ignoro.

