Jornalismo em estado grave
Acabo de ler a seguinte "notícia" difundida em linha (omito o nome da pessoa visada):
«A apresentadora da RTP, Fulana de Tal, estará grávida do primeiro filho. A informação foi avançada por uma fonte ao Notícias Ao Minuto.
Ao que tudo indica, Fulana de Tal está prestes a completar a 12.º semana de gestação, revelou a mesma fonte.
O Notícias Ao Minuto tentou confirmar esta informação junto da agente da apresentadora da televisão pública, mas até ao momento sem sucesso.»
Breves anotações:
- "Estará grávida" - ou seja, o boato assumido enquanto tal - já é elevado, por estes dias, à categoria de "notícia";
- No mesmo parágrafo confunde-se deliberadamente especulação ("estará") com "informação". Como se os dois conceitos não fossem antagónicos;
- Do condicional do parágrafo de abertura ("estará") salta-se para a quase certeza no segundo parágrafo ("está"), sem que ninguém tenha percebido a contradição, tanto na fase de elaboração como na fase de edição da suposta notícia;
- "Ao que tudo indica" pressupunha, no caso concreto, que a gravidez fosse um facto notório. Algo desmentido logo a seguir quando se especifica que nem completou 12 semanas de gestação (a propósito: semana é do género feminino);
- Para dar aparência noticiosa ao boato, num truque retórico equivalente ao de qualquer coscuvilheira de lugarejo, agrega-se a expressão "por uma fonte", jamais identificada, em colisão frontal com as normas deontológicas;
- O nome da visada está escrito entre vírgulas, pressupondo que só existe uma apresentadora na televisão pública;
- Depois de servir mercadoria adulterada - isto é, o rumor promovido a notícia - o meio em causa reconhece não ter ultrapassado a fase da mera tentativa na obtenção da verdade. Não falou com a suposta futura mãe, nem com familiares desta, nem sequer com a agente da apresentadora. "Sem sucesso", reconhecem. Mesmo assim, publicam. Na caça ao clique.
Conclusão:
Não sei se Fulana de Tal "estará grávida" nem tenho qualquer interesse em saber. Sei, isso sim, que o jornalismo português está doente com gravidade.