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Delito de Opinião

IPO

José Meireles Graça, 24.06.20

Tenho na garagem um charêlo com mais de 20 anos, que não se vende por razões sentimentais das autoridades domésticas e porque, de longe em longe, dá jeito.

Um luxo: levando em conta o custo do seguro, imposto de circulação (na realidade um imposto sobre a propriedade) e inspecção periódica mais valia alugar um carro quando fosse necessário.

Há uns anos o pagamento do IUC passou a fazer-se no aniversário do registo do automóvel, uma habilidosa mudança legislativa dos patifes que enxundiam a AT, contando que muitos condutores se esqueçam - se se esquecem do aniversário das consortes, por que raio haveriam de se lembrar do da porcaria do carro. A GNR, na realidade, para efeitos do trânsito automóvel, uma polícia fiscal, aplica multas terroristas em caso de esquecimento ou falta de dinheiro – este imposto e as multas respectivas castigam muitas vezes não a distracção mas a pobreza.

Multas gravosas são também devidas no caso da falta do abençoado selo da inspecção periódica. E por isso na semana passada levei o coche a um desses centros onde se fingem análises rigorosas e desisti porque havia aí uns 20 carros à frente; e a mesma coisa noutro da cidade que tem a honra de me contar nos seus naturais.

Ontem, porém, foi o dia. Esperei aí apenas umas duas horas debaixo de um sol abrasador e, quando chegou a minha vez, e porque o “perito” era novo, lá veio o diálogo surreal:

Abra o capot, por favor.

Para que efeito?

Preciso de pôr uns cabos no motor.

O motor não é à frente.

Então abra atrás.

Posso abrir (saindo do automóvel porque a tampa da mala só abre com a chave da ignição) mas por lá também não tem acesso ao motor, que é central.

Ah, e como vou fazer para ter acesso ao motor?

Não faço ideia, creio que por baixo, pondo o carro no elevador.

 

O homem resolveu o problema a contento, depois de obrigar a um tempo interminável com o motor às 3.000 RPM e gastando ainda mais com várias jigajogas para testar a suspensão e os travões.

Gosto destas partes gagas. E como não posso, como desejaria, enfiar uma carga de lenha no legislador que pariu estes inferninhos, faço parte daquela minoria de cidadãos impliquentos que têm, por funcionários, um respeito menos do que obsequioso, e pelas autoridades um escasso quanto baste.

Porque, sejamos claros, aqueles condutores que, debaixo de um sol escaldante, aguardam pacientemente que se lhes verifiquem os carros a troco de mais de trinta euros (o valor tem quebrados com cêntimos para dar a impressão que resulta de um qualquer cálculo científico e não de puro arbítrio; e porque a ideia de que um serviço público deve ter em conta a comodidade do público não cabe na cabeça de nenhum funcionário, e menos ainda na de um secretário de Estado qualquer com pressa de ir ao próximo workshop sobre o simplex) acreditam provavelmente que o que estão ali a fazer tem a ver com segurança rodoviária.

Mas não tem. Ninguém tem um carro a cair de podre se o puder ter em bom estado; ninguém circula com um carro com a direcção desalinhada, ou os travões em mau estado, ou os pneus gastos, se tiver meios para o reparar; ninguém, constatando que o veículo gasta anormalmente, deixará de o tentar corrigir; e, sobretudo, não faltam defeitos graves que um veículo pode ter, e que não são detectáveis pelos procedimentos normais de inspecção, como a Deco (uma organização socialista que, para resolver qualquer problema, reclama sempre mais funcionários e legislação) descobriu aqui há uns anos.

Investiram-se milhões para criar estes centros de parlapatice rodoviária; criou-se um corpo nacional de funcionários especializados em não fazer absolutamente nada de útil, enquanto há oficinas que têm dificuldade em recrutar mecânicos; deixou-se nascer um grupo de interesses que, à boleia da segurança rodoviária, torna impossível qualquer reforma que o prejudique; queimam-se milhares de horas de trabalho de pessoas que têm realmente que fazer e estão de guarda aos seus veículos, à espera de vez; e mobilizam-se armadas de burocratas que vão expelindo legislação, desde que em Dezembro de 1999 se transpuseram para o direito interno as elucubrações de uns anónimos do Conselho Europeu ou da Comissão (mais de meia dúzia de decretos-lei, desde então, e um número indeterminado de circulares e instruções de iluminados).

E então, a inspecção não serve mesmo para nada?

Serve:

Para a polícia se dispensar de verificar o estado do piso dos pneus (estes têm, actualmente, uns travessões que indicam o grau de usura), ou qualquer outra coisa, e perderem tempo a ver o bendito selo, no afã de passar a multazinha;

Para detectar desconformidades que nada têm a ver com segurança: há uns anos tive de substituir uma placa de matrícula porque a parte amarela estava desmaiada pelo sol (o mesmo amarelo com o mês e ano de registo que um legislador azeiteiro lisboeta achou que era indispensável figurar e agora um seu colega, com melhor gosto e possivelmente sem interesses em stands de automóveis, acha dispensável no modelo mais recente da mesma placa).

Para justificar multas, defesas, incumprimentos, ocupação dos tribunais com trivialidades, penhoras, e receita fiscal.

E de segurança, nada? Ora bem, o tal charêlo tem, há mais de uma dúzia de anos, o tensor do cinto de segurança do condutor avariado. Isto significa que o cinto não está lá a fazer nada, estando mais lasso do que as contas públicas. A Deco, se consultada, diria decerto que era preciso rever as normas, a ver se se consegue aumentar a lista de procedimentos até se perder não duas horas mas um dia, e pagar não um pouco mais de 30 euros mas meio salário mínimo. Pois bem, o cinto nunca ninguém viu. Ainda bem, desmontar aquela cangalhada seria um grande nó cego – o carro foi concebido por uns ingleses que já faliram, tem partes de ciência oculta.

Nunca ninguém viu que o cinto não funciona e quase ninguém vê os absurdos burocráticos que o moderno estado mete-se-em-tudo põe na vida das pessoas.

O carro, para a idade, não anda mal. E nós poderíamos andar melhor se víssemos os defeitos onde eles estão. Mas é como o cinto, está onde deve estar porque é obrigatório. Se funciona ou não – isso não interessa nada.

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