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Delito de Opinião

Inverter Pessoa

João André, 06.05.16

Reflectindo sobre o post do Pedro, náo posso deixar de pensar que este acordo ortográfico é de facto a verdadeira geringonça do país. Não pela vertente técnica ou científica, sobre a qual não tenho competência para me pronunciar, mas pela vertente política.

 

À partida nada tenho contra uma reforma que elimine as vogais mudas da nossa ortografia. Qualquer reforma que torne a ortografia mais fonética simplificaria a língua sem que a tornasse menos subtil e rica. Não consigo pronunciar-me sobre as dificuldades ou objecções científicas de tal hipotética reforma (o Pedro avança algumas com os casos «Egito"/egípcio, "caráter"/característica ou "setor"/sectorial»), mas é difícil argumentar que uma completa opção pela simplificação da escrita não seria preferível. Pessoalmente teria dificuldade em a adoptar (tal como não adoto esta), pura e simplesmente porque aprendi a escrever a minha língua de uma determinada forma e demorará tempo até que pudesse escrever de forma natural de outra (da mesma forma que muita gente continuou a escrever pharmácia até ao fim da sua vida). As futuras gerações, no entanto, não teriam os mesmos problemas.

 

Só que essa seria uma reforma que teria de ter um aval científico. Na França, a língua é regulamentada por um organismo estatal (ou mandatado pelo Estado, como no passado a Académie Française). Na Alemanha é o Conselho para a Ortografia Alemã que assume o manto de guardiã da língua (ou, pelo menos, da sua ortografia). Em ambos os casos, as reformas promulgadas no passado foram contestadas e alvo de críticas (como provavelmente qualquer reforma o seria). No caso da reforma alemã de 1996, alguns dos aspectos mais polémicos foram retirados após oposição de vários agentes (nomeadamente o - deveria escrever a? - prestigiado Frankfurter Allgemeine Zeitung). Na França, as novas regras receberam oposição mas não foram, em geral, impostas e foi considerado que ambas as versões seriam correctas. A implementação das regras ficou a cargo de cada indivíduo ou organização, sendo as novas regras apenas recomendadas para funcionários públicos.

 

Já o Inglês segue o percurso oposto. É uma língua onde não há uma organização central que regule o seu uso e aplicação e que, como tal, se torna muito mais orgânica e fluida. Poderá dizer-se que neste caso a âncora da língua são as publicações mais veneradas, como o Diccionário da Língua Inglesa de Samuel Johnson, A História do Declínio e Queda do Império Romano de Edward Gibbon, as obras de William Shakespeare ou, fundamental, a Bíblia do Rei James (exemplos que já vi referidos no passado - outros poderiam ser citados). A partir daqui é possível encontrar variações na ortografia entre diversos países (o uso do "s" em Inglaterra e o "z" nos EUA, nomes terminados em "ough" em Inglaterra passam a terminar em "o" nos EUA, etc) mas também diferenças enormes na pronúncia de sons escritos da mesma forma em palavras diferentes ("ough", por exemplo em "tough" e "thorough", é o meu caso preferido).

 

Poderia argumentar-se que a penetração do Inglês demonstra a importância de não acorrentar a língua e a manter plástica, mas eu não subscrevo este ponto. Vejo o domínio do Inglês como o resultado das actuais situações geopolítica, geoestratégica e geoeconómica. No passado o Inglês já tinha demonstrava esta plasticidade e no entanto o domínio de línguas como o italiano, alemão ou françês demonstraram que a importância segue mais linhas sociais que normas (ou ausência delas) científicas.

 

Há ainda no Inglês um risco: ao permitir a sua evolução independente, não demorará a que o Inglês nos EUA seja ininteligível para os ingleses e vice versa (em muitos casos os norte-americanos já demonstram dificuldades em compreender os nativos do Reuno Unido). Mesmo dentro de um país tão vasto como os EUA, a evolução da língua poderá levar ao surgimento de não só dialectos como de línguas distintas.

 

Seja como for, isso estará no futuro. Para um estrangeiro, aprender uma língua como o Inglês é facilitado pela flexibilidade que eliminou elementos mais complexos. Já a normalização da língua como com o Alemão ou Francês, conforta quem a aprenda, por não se defrontar tão facilmente com múltiplas variações.

 

Em qualquer dos caso, há no entanto uma definição clara em favor da auscultação da audiência a quem a reforma (ou sua ausência) se destina. O Alemão e Francês surgiram de esforços escolásticos claros e permitiram ajustes e períodos de ajustamento. O Inglês nunca perdeu o seu carácter transiente e informal.

 

Impôr uma reforma administrativa sem grande lógica ou coerência científica (é o que percebo em relação a este acordo) e não admitir um período de nojo para a sua implementação e teste é o maior pecado que qualquer Estado pode cometer em relação à sua Língua. Pessoa escreveu que a sua pátria era a Língua Portuguesa: o Estado quer inverter a relação, tornando o Estado a pátria do portuguès. Isto, mais que a reforma em si, é o que me move contra o acordo.

4 comentários

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    João André 06.05.2016

    Em termos formais é verdade Luís, mas a reforma não começou a ser implementada de forma suave. Foi aprovada e deixada como abandonada até chegar o momento em que foi imposta em alguns círculos e oposta noutros.
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    Costa 06.05.2016

    Esta reforma, sobretudo - mesmo que "humildemente" nos não pronunciemos sobre questões de ciência - falha estrondosamente nos seus objectivos.

    Não uniformiza: o país com, por longuíssima margem, maior número de habitantes que alegadamente falam português, manda-a às urtigas e evolui paulatina e, parece, orgulhosamente, para uma língua própria (o caso parece bem mais evidente do que aquele - EUA - que invoca).

    Não uniformiza, novamente: não o faz, não o poderá realisticamente fazer, salvo cenário de pesadelo, na sintaxe e no vocabulário.

    Não simplifica: introduz ainda mais facultatividades e ambiguidades do que aquelas que se poderiam apontar à anterior ortografia (o caso "para", basta para questionar o mérito de toda a "reforma").

    É cientificamente indefensável: acabo por suscitar este aspecto, apenas para remeter para os muitos exemplos que Pedro Correia - e outros, aqui e noutros lugares - tem apresentado.

    Aliás eu não tenho que ser médico para me aperceber de que estou doente. Não tenho que ser engenheiro ou mecânico para me aperceber de que o motor do meu carro funciona mal. O mero bom senso autoriza-nos, dentro de limites de bom senso, a opinar sobre aspectos que académica ou profissionalmente não dominamos. E aqui esses limites bastam para constatar o absurdo de tudo isto.

    "Isto" que só não é absurdo se visto sob critérios inconfessáveis, ou menos ligados à normal e saudável evolução de uma língua. Só perante esses critérios fará sentido. Tal como apenas uma militância cega à realidade (ou vivendo noutra) e fanatizada o poderá defender.

    Costa

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    Ana C. Leonardo 07.05.2016

    Absolutamente de acordo! Como Nação, nada nos orgulharia mais reconhecer o "brasiliano" como uma novilíngua do Português europeu... E, caro J.A., não é necessário ser perito ou proficiente na língua para reconhecer a mediocridade do AO90 - basta ser utilizador! A ceifa que imprime ao étimo (latino, grego) é motivo suficiente para rejeitá-lo! Como deveria ter sido, também e desde logo, a reforma de 1911! Que maleita é que teria vindo ao mundo se tivéssemos continuado a escrever "Pharmácia"? Que maleita é que teria vindo ao mundo se tivéssemos continuado a escrever "sciência"? Por certo, poucos seriam aqueles que hoje não identificariam "sciência" com "consciência"! A simplificação do instrumento linguístico (seja ele qual for, e de que forma seja feita - por decreto ou por via popular) só traduz a ignorância colectiva de um povo.
    A.C.Leo
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