Instantes em sépia com capa de muitas cores (18)
As gotas de água caiam esparsas mas pesadas, ploc ploc, no nariz, na cabeça, na boca aberta, escancarada num meio sorriso que me rejuvenesce meio século.
Algures nas entranhas da mala que me oscila no ombro, aquele alforge de bufarinheiro que me é tão característico, conservo trezentos e sessenta e cinco dias por ano, um projecto de guarda-chuva, encolhido e amarfanhado. "Nunca se sabe", digo, quando me criticam ... é bem verdade que a mala pesa arrobas e que eu não sei precisar com exactidão o que por lá vai...
Penso um nanososegundo e continuo à chuva. - A senhora quer "boleia" no meu chapéu? - Não, pequeno, obrigada, estou bem assim, faz-me remoçar. Ele riu... remoçar, pois sim.
Preguiça ou vontade de me molhar? Nem eu sei ao certo, mas que sabe bem... uma poça à frente, pulo? Ora, se já estou molhada, porque não ? Fico encharcada até aos joelhos. O rapaz olha para mim atónito ... nunca, mas nunca... que coisa esta !? - Quer esperar aqui enquanto vou buscar o carro ? Ficou lá em cima no largo. - Não, vou contigo, não quero ficar aqui sozinha à chuva a esta hora da noite. - Mas é sempre a subir. - Não faz mal, a caminhada faz-me bem.
Respirei fundo e arrepiei caminho, calçada a cima. Tentei acompanhar a passada. O rapaz é maratonista e eu apenas anafada... controlar a respiração... não sou atleta, cruzes... Inspira pelo nariz... expira pela boca... raio, será que o maldito carro ainda está longe ? Isto de não dar parte de fraca é complicado.
Trauteei mentalmente o " Joana come a Papa", provavelmente por ser um, dois três, uma colher de cada vez... Finalmente ! Deslizei o mais levemente que consegui para o banco. A música metálica jorrava rádio afora e os decibéis disfarçaram o abalo de Richter provocado pelos meus batimentos cardíacos.
O carro cheirava a novo e eu a saltar pocinhas... não admira que o rapaz olhasse de lado aquela mostra de infantilidades nimbosas.