Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Instantes em sépia com capa de muitas cores (16)

Maria Dulce Fernandes, 23.06.19

Fazer nada é a felicidade das crianças e a infelicidade dos velhos.
 
V. Hugo

voce-nao-tem-que-fazer-nada.jpg

 

Quem nunca deu de caras com o ponto G da ruptura emocional e psicológica, que atire a primeira pedra. 
 
Não me digam que se resolve com uma boa noite de sono. Desconheço o conceito há bastante tempo. Talvez nunca o tenha verdadeiramente conhecido. Muitos são aqueles cujo espírito sossega durante as horas de descanso, mesmo que poucas sejam, vá. 
Eu sou da raça que passa esse mesmo tempo em bolandas e correrias, em diversos e estranhos lugares, sempre com muita gente e em situações bizarras, algumas tão reais que me empurram para um acordar desnatural, extravagante até. Creio que foi sempre assim. 

É claro que é absurdamente fácil alcançar o estado de oblívio total, mas tornamo-nos tantas vezes tão convencidos, desleixados e auto-indulgentes quanto à habituação aos meios que nos conduzem aos fins, que criamos aquele ouroboros de continuidade: não descansamos enquanto não abraçarmos o descanso e nunca alcançaremos o almejado descanso se não pudermos descansar.
 
Não há dia que passe, que num qualquer momento, a uma qualquer hora, um qualquer acontecimento não me leve a vegetar pelo delírio das improbabilidades. Olho para as mãos, conto os dedos pela enésima vez e tento convencer-me que afinal já não falta muito, falta é chegar lá.
 
Uma vez estabelecida a meta, o pódium de toda uma vida de trabalho, o tempo, que sempre correu célere sulcando profundamente o rosto com a marca da sua passagem, esse mesmo, sempre tão apressado em nos carregar a experiência com anos em cima  de anos, dá-se ao desfrute do remanso para nossa exasperação. 
 
Enquanto aguardo remetida à desvantagem e ao desfavor, cogito sobre os prodigiosos anos dourados ainda no reino do porvir, mas que suscitam ânsias e impaciências sem fim. Irei finalmente poder colher os pomos das hispérides plantadas e cuidadas por minhas mãos durante anos de labuta, e cujo néctar me libertará enfim para realizar os prodígios globais que sempre me motivaram a prosseguir com o meu caminho e a carregar a cruz dos meus dias maus.

Atentando bem na realidade,  todos os meus objectivos são simples, por serem fruto de uma mente simples e pragmática. Coisa para três, quatro anos... 
Cuida-me que em tendo realizado os meus propósitos, ainda me ouvirão lamuriar de insatisfação por não saber o que fazer com o tempo que me sobra e que, qual saco sem fundo, nunca consigo preencher a meu contento...

21 comentários

Comentar post