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Delito de Opinião

Instantes em sépia com capa de muitas cores (13)

Maria Dulce Fernandes, 17.06.19
O Zêzere
 
 

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Quando se tem 6 ou 7 anos, crenças, verdades absolutas e mitos (que não sejam o Papão ou o Pai Natal) ainda estão longe das nossas questões existenciais mais prementes e queremos pouco saber quem somos, de onde viemos, para onde vamos, se somos uma criação divina ou apenas uma espécie mais evoluída, se a essência precede mesmo a existência... dentre todas questões que nos assolam na idade dos porquês, estas não são seguramente as que martirizam a nossa realidade.

 
Por essa altura da minha vida, ia passar as férias grandes para Nandufe onde uma irmã da mãe, casada com um alfaiate/industrial avícola tinha uma quinta de "produção" de frangos e ovos. A quinta era enorme, linda, cheia de sombras frescas, árvores de frutos e bagas selvagens... Amoras da minha perdição, directamente do produtor para o consumidor, com uma data de arranhões das silvas à mistura. Tinha um tanque que parecia uma piscina onde a Avó lavava a roupa (o perfume a sabão azul e branco enlouqueceria qualquer Jean Baptiste), tinha um rio repleto de bichos alfaiates, cristalino e quente, cheio de pedrinhas roliças no fundo, tinha uma balsa feita de bidons velhos, pneus e madeira  e tinha o Tó.
 
O Tó tinha talvez mais dois ou três anos do que eu e já tinha ido a Viseu, o que era um feito, naquele tempo. Tinha um pião com corda, uns carrinhos de madeira, um arco de pipa e tinha um... Zêzere.
 
O Zêzere era um pau com folhas de eucalipto espetadas de modo a que, quando esfregado entre ambas as mãos e mandado ao ar e lhe batesse o vento, rodopiasse num bailado cheio de tours en l'air e pirouettes,  antes de voltar lenta e docilmente à palma da nossa mão. 
 
Ao que parece a arte dos Zêzeres tinha o que se lhe dissesse e o Tó combinou um encontro secreto para me ensinar a confecção e as palavras mágicas que permitiam ao Zêzere voar naquela magnífica performance.
 
Só que foi adiando, o tempo passou e eu regressei a Lisboa; com 7 anos já teria que me tornar uma lente respeitável. Eu não sabia, mas aquele fora o meu último ano em Nandufe.
 
 
No Verão seguinte, na praia de Carcavelos, avistei um senhor que transportava um bambu cheio de pauzinhos com algo rodopiante que à primeira vista seriam... Zêzeres! Seria mesmo?
Corri célere e louca de alegria e perguntei ao senhor se sabia fazer Zêzeres. O homem olhou para mim a sorrir e disse que não, que aquilo eram só moinhos de papel.
 
 
Escusado será dizer que nunca mais vi o Tó e que sempre que pego numa folha de eucalipto a esfrego nas mãos para lhe sentir o cheiro, aquele perfume único, que, se eu fechar os olhos e estender a mão, garanto que sentirei o Zêzere a pousar, calmo e acariciante
 
Acredito que na existência, na essência da pessoa em que me construí, durante toda a minha jornada de aquisição gradual de conhecimento do ovo até hoje, mas tenho uma séria lacuna a preencher, uma pergunta que poderia ser a resposta a todas as minhas questões existenciais: afinal, o que é um Zêzere ?

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