Anatomia de Gray

Depois de mais uma noite com o jetlag resultante da falta de repouso a reaparecer assim do nada, como um post-it do subconsciente a relembrar que as intermitências do descanso e do cansaço andam de mãos dadas e são inseparáveis univitelinas, saltei do calor que já sentia quente demais para a amenidade do tapete afegão, provavelmente contrafeito em Taiwan e vendido aos incautos com um preço promocional fantástico, um autêntico negócio da China, como acreditei na altura.
Bem empantufada, dou de caras comigo a olhar para mim, com uma expressão de desdém trocista como que a chamar-me a atenção para a minha própria figura de matrona de cabelo grisalho desgrenhado, encafuada num robe polar, por cima de um pijama polar , pálpebras inchadas e boca seca, numa ruidosa tentativa de fazer entrar algum ar pelas fossas nasais intumescidas com a proverbial sinusite ... um figuraço.
Confuso, o meu Dorian Gray olha-me do alto, fabuloso nos seus 18 anos de mulher esbelta de grandes olhos castanhos e farta cabeleira escura . Deve sofrer horrores todos os dias, sem conseguir perceber qual o passe de mágica ou o bruxedo que resultou naquela deformidade, sentindo que lhe trocaram as voltas, pois pemanece imutável na memória.
Acode-me a lembrança das vaporosas camisas de noite em cetim negro, delgadas como um traço fino num retrato a carvão.
Sorrio para mim, com aquele sorriso conformado de quem sabe que não pode alterar uma escultura que o tempo vem cinzelando devagar. Tentar mudar-lhe a forma, seria descaracterizá-la por completo e não representaria a mim própria nem a ninguém. O escultor de fim de ciclo tem até o trabalho facilitado na representação do meio-esférico tubérculo que presentemente me retrata.
Se eu pudesse escolher ser alguém diferente, tenho a forte convicção que escolheria ser eu própria, com o meu mais de meio século nas ancas, com todas as partidas que a força da gravidade me pregou, com os mesmos olhos castanhos que não perderam o brilho e falam com quem os souber entender e com todo o saber que de tanto não é nada na realidade, mas que me faz sentir feliz de o saber comigo.