Instantes em sépia com capa de muitas cores (8)
Redacção :
Gosto de viver nos livros.
O livro é aquele companheiro silencioso que tem o poder de te abstrair do espaço e do tempo, de te transportar na crista de uma onda, cabelos ao ar e borrifos salgados de mar e sangue, alvoroço e aventura, por entre troar de canhões, gritos e mastros quebrados que tombam gementes, arrastando consigo as cruzes derrotadas, trapos rasgados e sujos que o orgulho oco não insuflará mais.
Os meus livros falam comigo. Abrem-me portas para o espaço brilhante de nebulosas prenhes de mundos esdrúxulos tão atípicos e monumentais como as criaturas que neles habitam e que, como o livro que seguro, comunicam sem falar, sem som nem movimento, límpida e cristalinamente como se eu fosse um náufrago sequioso de saber e o conhecimento a única panaceia.
Aquele terceiro acolá na estante, acompanhou-me na caravana de mercadores que atravessou meio mundo até Cathay e Manji; dois tomos a seguir sorri-me o que me levou à ilha dos homens pequenos e de regresso pela terra dos gigantes. Na prateleira de cima sinto o cheiro das Ramblas à noite, de Macondo ao entardecer, e oiço o pregão das Bahianas coloridas com perfume de cravo na areia do Agreste.
Baixo-me e retiro o último do transmontano dos países baixos, que me intriga pela objectividade da escrita, que me faz sempre pensar em biografia, sempre, sempre que o leio.
Lá no alto, inacessíveis e ostensivos, estão os grandes. Os maiores em tamanho e preferência também. O que canta o peito ilustre lusitano ao lado duma série de lombadas iguais em cor e diferentes em tamanho, todos da família daquele que nos mostra o interior austero do Ramalhete. Com um pequeno busto do cego a separá-los ressalta a sua própria obra épica, bem como o clássico do romano que lhe dá seguimento. Este último confidenciou-me que o amor é algo terrível, que destrói corações e leva à loucura e à morte. Os russos, na prateleira abaixo, confirmam que sim, que a confidência do colega é exacta, basta lê-los também.
São tantos, tão interessantes e fartos no saber das coisas que contam, que me encantam e fazem desejar mais e mais, cada ver mais, dezenas, centenas, muralhas de cultura e fantasia, camaradas de muitas horas, amigos de sempre.
Os meus livros falam comigo, são meus confidentes, contam-me coisas, fazem-me rir, chorar, ficar suspensa dum gesto, reter a respiração, acelerar a pulsação, vibrar o coração.
Viver nos livros é poder viver muitas vidas, é enganar o tempo e renascer continuamente no mar, nos céus, nos desertos, com o sol ou com a lua, em descrições tão vivas como quadros renascentistas ou fotos de alta definição.
Sem palavras com falas audíveis, sentimos apenas o feitiço e a emoção que te sussurra ao olhar enquanto a seguras e avidamente lhe mudas a página.