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Delito de Opinião

Instantes em sépia com capa de muitas cores (7)

Maria Dulce Fernandes, 28.05.19

Mescalina 

 

Embarquei no Karaboudjan numa tarde cinzenta de Junho. Quis fugir aos arraiais, ao cheiro a peixe assado à folia e aos autos de fé que emergiam das brasas de cada fogueira, ao som da excomunhão pimba, esganiçada na voz de um qualquer debochado animador de 5ª categoria. Que local melhor para enterrar recordações do que a bordo dum pesqueiro enredado em mistério e vício, onde caras lúgubres desapareciam em cada canto de cada sombra, como enguias negras viscosas e escorregadias, deixando no ar promessas de aventuras ilícitas, tórridas e tão sujas como o chão do passadiço, que fedia ao negrume duma noite que se anunciava breve. 

Não gosto de barcos. São prisões flutuantes repletas de enjoo e perversão, onde gritos e gemidos se confundem com o marulhar das ondas que fustigam incessantes de bombordo a estibordo, entontecendo, agoniando, golfando espuma e vinagre sob aquele odor permanente a mofo e sal. 

Dois dias sem largar a enxerga, sem noção da irrealidade que se dependurava da parede numa lâmpada fraca e suja, sem conter sustento nem reconhecer hálitos nas faces desfocadas que iam e vinham. 

Ao terceiro dia avistámos a ilha Kirrin, encimada pelo triste e pequeno castelo em ruínas. Atracámos e vi-os olharem-me, fixos e vazios na escarpa mais alta. Contei-os. Eram cinco. A sua presença sobrepunha-se a todos e a tudo ao seu redor, enormes e assustadores gigantes de pedra. Estavam dois meses, quase três atrasados: a Páscoa fora em Abril. 

Uma velha escura e enrugada de mãos postas e ancas bamboleantes, pôs-me um Katak ao pescoço e ofereceu-me um galo preto e um Cohiba, enquanto subíamos pelo trilho dos druidas, vereda estreita e frondosa, pontuada  com dolmens do tamanho de casas em que o musgo criara cabelo dançante à passagem das almas e onde por debaixo dos nossos pés se movimentavam exoesqueletos maiores do que punhos fechados. 

Sob a sombra dum salgueiro ululante, serviram-me um gumbo de peixe quase em papa numa marmita amolgada que fedia a ranço e amarelo, acompanhado duma zurrapa alcoólica com sabor a cacto e a miragem. 

Do promontório, o azul do mar era uma bênção. Lembrei-me das Célticas e de Puck, e deixei-me chorar as tristezas que correram pelo glaciar do fiorde maior e se transformaram imediatamente num gelo cinzento, tão cinzento como os meus dias. 

O Delta via-se já ao longe, por entre a folhagem e o serpentear do rio. A chaminé fumegava e a grande roda girava, ruidosa. Era o Mary, orgulhoso e imponente, rodando as pás em volta do eixo, como a terra no seu periélio após cada solstício!  Espreitei para dentro da manga e vi lá o às de espadas. Apertei o passo, louca de alegria, como se tivesse 7 anos e um brinquedo novo. Estava quase lá. 

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