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Delito de Opinião

Instantes em sépia com capa de muitas cores (5)

Maria Dulce Fernandes, 18.05.19

Três Ratinhos

 

Noite tranquila desconheço o que é há bastante tempo. Presumo que seja o que  acontece quando uma pessoa se deita, dorme mais do que 4 horas e acorda leve e saltitante. Pode parecer mais estranha do que ficção, mas a verdade é que há muito, muito tempo, fui senhora de dormir 10 horas seguidas e chorar por mais. 

 

O despertar da casa começa por volta das cinco e meia e leva-me com ele a reboque. Consigo quase sempre ganhar ao despertador. Ainda ele está no primeiro sono e já eu bailo o fandango dos minutos e das horas até soar a alvorada, suave e calma com toda a beleza com que Grieg a pintou.  O guinchar do moinho do café torna-se uma bela melodia, o aroma espalha-se languidamente pelo ar e o sabor quente, amargo e forte é uma secreta fonte de prazer. 

 

Com a chávena fumegante na mão olho a rua pela janela.  É noite ainda, mas eles já lá vêm, a mãe com os três pequenos que uma carrinha branca amolgada cheia de gente deixa ao fundo da praceta. O veículo segue e eles sobem a ladeira íngreme que dá acesso ao prédio. São três, os pequenos. Parecem uma escadinha. Vejo-os muitas vezes no hall do prédio quando saio para trabalhar cedo, mas não sei se os vejo realmente. Limito-me a um "Bom Dia" ao qual a mãe responde sempre com um alvo e escancarado sorriso, os mais pequenos com um resmungo ensonado .

 

Hoje olhei com olhos de pensar. O mais pequeno já anda pelo próprio pé, mas ainda há bem pouco tempo carregava-o a mãe e as irmãs ajudavam com os sacos. A mãe entra no prédio às seis e meia da manhã e sai muitas vezes já se pôs o sol; o pai está para França, a trabalhar na construção porque lá pagam pelo trabalho que faz. Cá, já por mais do que uma vez que o dono da empreitada abandona o país levando com ele o pão das famílias dos que deram ali o seu suor. Moram naqueles bairros projectados, espécie de ghetos de marginalidade, onde mesmo que sejas bom, tens que ser um artista da sobrevivência. 

 

Oito e quinze e lá vão os três para a creche de mão dada, o bebé no meio. A mais velha não tem mais que sete anos mas é ela quem manda. Hoje não chove e vai a cantar, alegre. Lê-se-lhe no olhar infantil a determinação de quem foi incumbido da tarefa mais ingrata que existe : proteger os mais novos dos males do mundo, das agruras que se escondem no caminho, em cada esquina, em cada sombra. Tão pequena e já tão grande. 

Acenam à mãe que da janela os vê seguir ladeira abaixo, pequeninos e nervosos como três pequenos ratinhos. 

 

Volto-me de novo para a máquina de café e carrego no botão. O som do moinho, tão musical há alguns minutos atrás parece agora um horrível grasnar dum disco riscado, mas o café continua a saber pela vida e arranca-me aquele sorriso de satisfação que eu reconheço um tanto deslocado. Mentalmente desejo-lhes bem e vou à minha vida. 

2 comentários

  • É um bocado triste constatar que olho e vejo muito pouco... é a pressa, é o sono, são desculpas para a falta de empatia que só reconhecemos não ter qb, quando olhamos o mundo que nos rodeia com olhos de gente que sente.
    Obrigada Fátima. Bom Domingo.
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