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Delito de Opinião

Instantes em sépia, com capa de muitas cores

Maria Dulce Fernandes, 01.05.19

Não via a Maria João vai para 20 anos. Eramos as marronas da turma, companheiras de carteira e cúmplices, durante os dois últimos anos de liceu, naquele palacete dos Condes da Ribeira Grande, hoje em vias de se tornar Hotel Museu.
Curiosamente a Maria João está uma elegância. Ela que era referida carinhosamente como “a gordinha" conseguiu uma silhueta curvilínea e mantém uma forma impecável. Confesso que senti uma ponta de inveja e saudade de mim, de quando éramos as duas contra as revolucionárias de Santo Amaro, as que votavam nas greves para poderem ir para a praia.
Conversámos horas sobre tudo, sobretudo sobre as nossas peripécias de miúdas que em meses cresceram anos. As nossas campanhas no Liceu para as eleições presidenciais foram loucas. Apoiante incondicional da UEC e de Octávio Pato, a Maria João colava os seus cartazes por cima dos meus e pintava bigodinhos de Hitler nos "meus" Ramalho Eanes. No fim do dia arrumávamos as trouxas e seguíamos a rir que nem umas malucas das peripécias do dia. Foi sempre assim. Unia-nos uma forte amizade e uma loucura saudável que todas as colegas e professores aceitavam, apreciavam e até acarinhavam. Depois das escaramuças ideológicas, a política ficava sempre relegada para aquele plano em que não belisca a amizade.
A Maria João nunca teve filhos. Foi como cooperante de PCP para as ex-colónias e o que viu e viveu por lá marcou-a de tal modo, que a ideia de pôr filhos no mundo deixou de fazer sentido.
Senti-a calada e reticente durante grande parte do tempo em que tagarelámos interruptamente, mais eu e as minhas lembranças. A dado momento olhou-me fixamente, apenas para dizer que o “terceiro marido” era a Guilhermina Parada, que estavam juntas há quase 10 anos e que nunca se tinha sentido tão realizada.
Sorri-lhe. Depois de um amigo e colega se revelar transsexual e de o meu surfista dourado, a minha grande paixão de adolescente me apresentar o marido, ver a minha melhor amiga feliz com quem escolheu para companheira, só me pode encher de alegria.
A Maria João continua a dar aulas, contando os dias para a reforma dourada que ambiciona, repleta de projectos e planos para uma volta ao mundo a dois. Falava da itinerários, povos culturas, paisagens… ah a reforma, são apenas mais cinco anos.
Despedimo-nos com a promessa de não esperarmos outros 20 anos, até porque quem sabe, nem os temos para esperar.
Quem sabe nem cinco anos teremos e a utópica reforma nunca chegará. Penso nisso todos os dias.

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