Indignações estratégicas
["A TVM a reportar tumultos em Portugal e não fala do caos nos arredores de Maputo"]
O processo eleitoral moçambicano tem sido complexo. Com assassinatos. A seguir ao anúncio dos resultados houve manifestações de repúdio em várias cidades, fazendo temer a disseminação de violência, o que felizmente não aconteceu, pelo menos em grande escala. Recebi imensas mensagens no frenesim comunicacional destes últimos dias - reduzido desde ontem, pois o Estado bloqueou os "dados móveis" para acesso à internet (fazendo lembrar quando há 14 anos bloqueou as comunicações telefónicas mais populares, aquando de tumultos em Maputo). Entretanto vários amigos, moçambicanos e portugueses, enviaram-me esta mensagem (foto e legenda): no telejornal do canal estatal (TVM) foram noticiados os "desacatos" na Grande Lisboa enquanto se calava qualquer referência à turbulência acontecida nesse dia naquele país. O controlo da imprensa estatal é coisa típica, não monopólio moçambicano. Mas não deixa de ser notável.
Ontem assinei uma petição pública, avessa aos deputados André Ventura e Pedro Pinto, autores de declarações inadmissíveis sobre estes motins nas cercanias de Lisboa. Não sou adepto, nada mesmo, da criminalização de deputados por declarações de teor político, fazê-lo arrisca ser um destapar da caixa de Pandora. Mas abstenho-me agora desse princípio, associando-me a uma manifestação de repúdio diante de uma verdadeira abjecção - o deputado Pinto chegou a apelar que os agentes "atirem para matar". Em última análise, é a própria polícia que não merece tamanho disparate! E também sabendo, como o disse Sérgio Sousa Pinto, que os deputados nunca abdicarão da imunidade parlamentar.
Sobre a real situação securitária em Portugal nada sei, como escrevi há pouco. Mas sobre estes tumultos actuais concordo com o que ouvi ontem de Ângelo Correia na CNN (num programa de comentariado com Marques de Almeida, Sá Lopes e Sousa Pinto, que ontem descobri aquando em zapping) - o que me provocou um "ó diabo, eu a concordar com o Ângelo Correia?!" Ou seja, esta problemática não é apenas securitária. E não posso discordar mais da jornalista Sá Lopes, a qual reproduz uma ignorância generalizada na auto-reclamada "esquerda", essa que reduz as preocupações securitárias a meras "bandeiras da direita". Denotando como é espantosa e veemente a capacidade de intelectuais e jornalistas em nada aprenderem com as realidades circunvizinhas.
Enfim, apesar de desconfortável com a iniciativa criminalizadora de deputados, tendo recebido de uma queridíssima amiga (cherchez la femme, sempre) a petição, li-a e assinei-a, juntando-me a cerca de 70 000 outros (no momento em que escrevo o postal). É óbvio que a associação a uma iniciativa colectiva implica sempre a suspensão de alguns critérios próprios, o inflamar de alguns pruridos. Mas, e repito-me, o grunhismo dos deputados CHEGA é tamanho que a coceira se justifica.
Explicito dois desses focos de inflamação, para que se perceba o quanto me irritaram as declarações de Pinto e Ventura, pois só tamanha abjecção me faria "juntar", mesmo que modestamente, a tais pessoas num rol de assinaturas. A petição é encimada por um vasto rol de "primeiros signatários". Nele consta o nome do socialista Porfírio Silva, um político de execrável indignidade - foi ele que veio clamar que Passos Coelho usava a doença da sua mulher para colher dividendos políticos. É incompreensível como outros ainda lhe dão crédito para ser "alguém" na vida política e/ou de cidadania.
O outro caso é mais significativo. Eu defendo que os estrangeiros, residentes ou não, podem manifestar-se sobre a vida política portuguesa. Mas fico a menear a cabeça, com indignação (nada estratégica, friso), quando vejo o angolano José Eduardo Agualusa a surgir como um dos "primeiros signatários" desta petição política sobre Portugal. Sabendo-o sempre em calmaria pública no Moçambique onde reside. E agora surgindo em declarações públicas suportando o bloco social no poder, invectivando o candidato Mondlane - mesmo depois da comitiva deste ter sido baleada pelas forças policiais. Compreendo esse silêncio sobre o país que habita. Grosso modo foi o meu - ainda que não radical -, na modéstia de qualquer repercussão que pudesse ter, pois sempre me dizendo meteco. Mas se isso compreendo também interpreto a sua adesão actual, enquanto segue plácido diante da violência estatal sistémica, de inúmeras declarações abrasivas, do rumo nacional, feito de coisas tao mais graves do que isto que se passa em Lisboa. Sobre as quais nada... assina
Por isso, e independentemente das nacionalidades de cada um, percebo como é necessário um grande desplante para que o autor surja agora com posicionamentos políticos em Portugal. Num rumo - que se quer "premiável" - feito de indignações estratégicas.
Ou, dito de outra forma, Agualusa é tal e qual a TVM.