Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Incertezas

Sérgio de Almeida Correia, 18.02.20

559145.jpg(foto daqui)

1. A incerteza tomou conta dos dias. Não só em Hubei, mas em toda a China. E também em Hong Kong e Macau, onde por outras razões já grassava há muito tempo dada a forma desconcertante como de cada vez que soprava uma ligeira e refrescante brisa se tentava parar o vento por decreto. Como se o vento pudesse ser travado.

2. De repente, os milhões de “turistas” que inundavam as nossas ruas, contribuindo para uma especulação constante e disfarçada, em especial ao nível da alimentação e do imobiliário, e para as receitas astronómicas dos casinos desapareceram. Evaporaram-se. Até os milionários que há décadas embolsam milhões vieram logo queixar-se da “falta de negócio”, reclamar subsídios e impor aos mais pobres os custos dos erros de governação. O caso de um certo hospital privado que todos os anos recebe centenas de milhões e que queria que os seus trabalhadores residentes em Zuhai ficassem a dormir em Macau durante a crise, pagando estes do seu próprio bolso o alojamento, é a todos os títulos sintomático da dimensão do desplante.

3. A crise desencadeada pela situação de Hong Kong, primeiro, e depois pelo novo coronavírus, baptizado COVID-19, veio mostrar a quem ainda tivesse dúvidas que a diversificação económica em que os anteriores governos, aliás seguindo orientações de Pequim, tentaram apostar em Macau, não passou de um canhestro programa de intenções onde se esvaíram rios de dinheiro sem qualquer resultado, tal a forma desgarrada, inconsistente e amadora, para ser brando na análise, como se projectou e geriu a coisa pública. Não há nada como um bom abanão para se ver a solidez das fundações. Neste caso, para mal de todos nós, estas são praticamente inexistentes.

4. À RAEM valeu, e vai continuar a valer, a acumulação de receita gerada pelo jogo, única actividade com dimensão e projecção mundial e que nesta hora, em que pairam todas as dúvidas, confere algum desafogo à acção do Chefe do Executivo (CE) e à sua equipa. Poder-se-á discutir a justeza, o acerto e eficácia das medidas aprovadas para enfrentarem o surto epidémico, mas tal, em todo o caso, não ilude algum pragmatismo e capacidade de decisão reveladas, sublinhando-se o aparecimento da autoridade que há muito faltava na decisão política e que diariamente retirava ao antecessor capacidade de se legitimar para o exercício das funções. 

5. Aos governantes cuja legitimidade não assenta na escolha por vontade popular, a única forma de a verem reconhecida é através do sufrágio das suas decisões na vida de todos os dias. E aquele era claramente desfavorável ao anterior CE. Reconheço, todavia, que as medidas tomadas pelo Governo da RAEM ainda estão aquém do esperado, nomeadamente no que diz respeito ao controlo das fronteiras, o que tem permitido o vaivém diário de uma dezena de milhares de pessoas que entram e saem sem que daí resulte qualquer garantia para quem está deste lado de que por cá não ficam mais maleitas do que as que por aqui residem, numa altura em que se admite poder o período de incubação do COVID-19 atingir vinte e quatro dias. 

6. Para já, tenho a convicção de que as medidas estão a resultar face à inexistência de novos casos e à recuperação dos entretanto diagnosticados. Pequeno alívio e sinal de esperança em relação ao que ainda falta cumprir até que a calma e a segurança regressem ao espírito de todos. 

7. Em todo o caso, como “cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém”, e em matéria de saúde pública não se pode facilitar, saúdo o acompanhamento que da situação tem sido feito pelo CE, em especial pelos novos secretários para os Assuntos Sociais e a Economia, esperando que os sinais positivos que agora chegam possam ter continuidade. As medidas tomadas poderão trazer algum conforto imediato, embora não resolvam os problemas de fundo. Pagar três meses de electricidade a particulares ou empresas sem qualquer critério é absolutamente irrelevante, havendo quem vá beneficiar da generosidade pública sem que se compreenda razão para tal. 

8. Compreende-se sim a necessidade de distribuir rebuçados, segura como está a evidência de que não é com patriotismo, reforço desmedido do autoritarismo e do controlo policial e distribuição de cheques sem critério, a uma opinião pública acrítica e aos patrões de uma comunicação social que na sua quase generalidade se mostram disponíveis para responder a estímulos pavlovianos, que se melhora a saúde pública, se combate a falta de higiene generalizada ou se forjam políticas públicas capazes, valorizando e qualificando as pessoas que o merecem ou elevando-se a competitividade das empresas locais.

9. Os sinais que nos chegam do outro lado continuam a ser preocupantes. A ebulição sente-se. Hong Kong desapareceu das notícias perante as consequências da tragédia de Wuhan. As perseguições que se seguiram a gente que mais não fez do que tentar alertar os seus concidadãos para a desgraça que aí vinha, e que ainda ninguém sabe quando e como terminará, mais do que revelarem o medo de um regime cujos alicerces assentam na repressão de elementares direitos fundamentais, dão conta do desacerto. Bastou o prolongar da guerra comercial com os Estados Unidos da América, um sopro popular em Hong Kong e o COVID-19 para se tornarem patentes as deficiências da gestão interna, as quais vinham sendo iludidas com os resultados económicos mais recentes. 

10. Os acontecimentos das últimas semanas demonstram que se optou por novo salto em frente. Como se o reforço do poder pessoal autoritário, de que constituíram ponto alto as medidas aprovadas em Outubro de 2017 pelo XIX Congresso do Partido Comunista da China, pudesse alguma vez esconder os erros cometidos na forma como se lidaram e iludiram as expectativas da população. O elevado nível de insatisfação pelo que está a acontecer, e a forma desconcertante como os responsáveis geriram os primeiros sinais do surto epidémico, são hoje impossíveis de esconder e ditam, mais do que razões de saúde pública, o adiamento dos conclaves de Março da Assembleia Popular Nacional e da Comissão Política Consultiva do Povo Chinês. 

11. As punições aplicadas aos dirigentes do partido em Hubei e a substituição, mais uma a juntar às alterações antes verificadas nos Gabinetes de Ligação, de responsáveis pelo Gabinete dos Assuntos de Hong Kong e Macau junto do Conselho de Estado dão nota do receio e de algum descontrolo. Se as mudanças são compreensíveis à luz dos critérios ditados pelo PCC, atentos os resultados em termos sociais, económicos e políticos – insustentáveis para qualquer regime apesar de serem o resultado das escolhas efectuadas por quem manda –, já as punições reflectem uma atitude típica do centralismo democrático e das consequências dessa opção política de fundo.

12. O comportamento das autoridades de Wuhan, quando “patrioticamente” desvalorizaram os sinais da epidemia, perseguindo quem exerceu, e bem, as suas obrigações profissionais e de cidadania, alertando para o que aí vinha, mais não foi do que seguir o padrão que lhes foi transmitido pela escola do partido. Está-se a pagar o resultado da ausência de accountability popular, da falta de transparência no exercício do poder, do permanente controlo policial e da necessidade do mais leve movimento ser abafado, e logo qualificado como rumor, punível disciplinar, criminal e politicamente até quando em causa está a defesa do interesse público e da própria população chinesa. 

13. O que aconteceu em Wuhan teria também acontecido em Macau com os que aqui defendem a linha dura. Das coisas mais inócuas às mais importantes. O medo maior é o de ver fugir a própria sombra, não vá esta colocar em risco o status quo, a paz celestial e a luz que emana da reflexão dos nossos oligarcas. 

14. Estranhamente, há algumas semanas que se mantêm silenciosos os representantes locais das teses que o COVID-19 fez cair com estrondo. Nestas alturas se vê a inutilidade dos milhões investidos em segurança para monitorizarem os mais irrelevantes passos de todos nós. Um simples vírus, cujos riscos poderiam nunca ter acontecido com outras políticas, faz tremer todo um edifício que não sobrevive sem o controlo, a repressão e a perseguição política. Até aos médicos que servem o povo. Percebe-se a razão para o silêncio. Pensar que poderão estar a reflectir sobre o que sucedeu em Wuhan não será descabido. O que os dirigentes punidos fizeram vem na cartilha distribuída pelo partido. E pode suceder a qualquer um que a siga. Tudo depende de onde o vento soprar. 

15. Demitir, despromover, prender pode servir para adiar. Porém, não impede as pessoas de se interrogarem. Atirar as culpas para os dirigentes comunistas locais ou encontrar quem pendurar no pelourinho da informação controlada é coisa fácil. Mais difícil será fazer responder politicamente perante a nação chinesa os verdadeiros responsáveis pelo desastre epidémico, social e económico provocado pelo COVID-19. 

16. O que me leva a deixar aqui uma simples questão à reflexão: para que servem os porta-aviões, um exército forte, as câmaras de vigilância e reconhecimento facial da última geração, a maior ponte do mundo, uma informação controlada e todos os carros de luxo com vidros fumados em que se deslocam os grandes senhores do regime, quando setenta anos depois da revolução se continuam a comercializar animais selvagens em mercados, há quem não saiba usar uma sanita, é preciso dizer às pessoas para lavarem as mãos, e um vírus que não se conseguiu esconder, aparentemente originado por práticas tradicionais do domínio do irracional e sem qualquer utilidade científica, provoca milhares de mortos, altera a agenda política de um país com cerca de 9,6 milhões de km2, cancela um número incontável de voos comerciais e de eventos com repercussão mundial, confina mais de 60 milhões de pessoas a um isolamento quase-medieval e condiciona a vida de muitos outros milhões dentro e fora do país?

5 comentários

Comentar post