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Gente de muito mais cachet do que eu tem-se recentemente ocupado do caso Ihor Homeniuk: Garcia Pereira, aqui, Daniel Oliveira aqui ou Luís Aguiar-Conraria aqui.
Estes e outros. E à medida que o novelo se vai desenrolando vai-se percebendo que o SEF é uma organização criminosa e que o assassinato chegou à opinião pública porque uma vítima teve o atrevimento de morrer e porque umas quantas, poucas, pessoas não quiseram encobrir.
Como se isto fosse pouco, a procuradora Paula Alexandra de Melo de Menezes Soares, que se ocupa do caso, veio insultar objectivamente a família da vítima sacudindo a água do capote do Estado com a argumentação de que "a causa de pedir daquela pretensão civil não é a prática do crime descrito na acusação, mas antes a violação dos deveres funcionais que fundamentarão eventual responsabilidade extracontratual do Estado”. A consequência desta interpretação seria então que para demandar o Estado com esse fundamento seria necessário instaurar uma ação cível autónoma etc. etc.
Dito de outro modo: a família escolheu mal o advogado, este não conhece o caminho das pedras. E as coisas até poderiam ser assim se não tivéssemos a razoável suspeita de que outros advogados e magistrados terão entendimento diferente, o que significa que as opiniões sobre o guichet do Estado onde se apresenta a reclamação são mais importantes do que a própria. Que nas repartições do Estado tenha de ser assim por razões funcionais pode por vezes entender-se; que num caso destes sequer se levante este problema é atitude que nem qualifico.
O lamentável ministro da pasta poderia intervir, decidindo pagar o que é exigido ao Estado e levando a sua decisão ao Parlamento, que decerto a cobriria (faço a justiça aos parlamentares, com excepção talvez do polícia à civil Ventura, de imaginar que outra não seria a decisão), em vez de ir para lá balbuciar histórias mal contadas; e ao Parlamento não ficaria mal ocupar-se deste caso, num intervalo dos votos de pesar pela morte dos génios do semestre. Assim como o presidente da República, tão lesto a babujar com amplexos os populares que o vão reeleger, deveria por uma vez encarnar não a vergonha que não temos mas a que deveríamos ter, com o recebimento da família enlutada.
Não vai suceder: seria preciso um clamor da opinião pública, e esse está reservado para os problemas da Cristina Ferreira e os desaires da Selecção.
As ilustres personalidades acima reclamam a demissão dos responsáveis envolvidos, incluindo o ministro, e mencionam o caldo de cultura que tornou este crime possível; e Garcia Pereira lembra, a propósito de abusos policiais, a exigência por cumprir de obrigação da visível identificação de todos os agentes policiais.
(O Chega! achou a ocasião boa para apresentar um projecto de lei para proibir, punindo com pena de prisão, a captura e difusão de imagens ou vídeos de atuação policial. André Ventura não tem propriamente escolhas seguras sobre coisa alguma, salvo oferecer no supermercado das ideias políticas produtos para os quais haja procura que esteja por satisfazer. Este, o do atropelo de conquistas da civilização em nome da segurança, recomendaria que deixasse de se apresentar de fato e gravata e passasse a andar de capuz e botas cardadas. Tem juízo, André: há guerras que as pessoas decentes não devem travar, e agradar à escumalha pode ser um exercício rendoso mas não é para cavalheiros.)
Resta que a morte de Ihor Homeniuk é um caso extremo, mas tratá-lo como se fosse apenas um incidente lamentável num quadro geralmente aceitável é uma ingenuidade. Uma pessoa que estimo e admiro dizia há dias: “… os polícias só são notícia quando erram, como aconteceu na esquadra de Alfragide. Caso contrário, por exemplo quando são atraídos a emboscadas, resta-lhes o Correio da Manhã e umas notícias breves para que os fact check possam garantir que se abordou o assunto”.
Dizia mal, não porque a comunicação social não tenha agendas nem seja tendenciosa – tem e é – mas porque o abuso dos poderes do Estado é uma ofensa civilizacional e as dificuldades no desempenho de missões de segurança uma fatalidade. Que justifica um estatuto especial, incluindo remuneratório, mas não poderes não sindicados que se possam traduzir em abusos.
Poderes não sindicados tem-nos também, em parte, o Ministério Público, e deles não tem feito bom uso: basta lembrar o caso Sócrates, um monumento à inoperância e ao falhanço, a tal ponto que não é certo que venha a ser julgado com a maior parte dos seus antigos eleitores ainda vivos; e têm-nos as polícias, a AT, a ASAE, os agentes de execução e inúmeros outros serviços públicos que todos os dias cometem pequenos e grandes abusos que nunca chegam à opinião pública porque há a cultura difusa do respeitinho, a ideia deletéria de que esse é um preço que é preciso pagar em nome de bens maiores e a triste realidade da impunidade.
A impunidade é a pedra de toque: um homem morreu e isso será sancionado, mas quantas centenas ou milhares foram vítimas de atropelos menores que nunca ninguém conheceu? A AT aparece às vezes nas notícias porque praticou uma qualquer barbaridade que lesou centenas de contribuintes, ou por um ou outro caso escandaloso que um jornalista se lembrou de trombetear, mas quantos funcionários foram castigados por obrigarem a ir para tribunal contribuintes cujo caso é igual ao de outros que já obtiveram ganho de causa, ou por liquidarem empresas viáveis com acusações delirantes? O polícia que abusa porque está mal disposto ou vê demasiados filmes americanos, e que foi objecto de queixa, quantas vezes foi investigado? E os responsáveis (chefes disto e daquilo, directores-gerais, comandantes, ministros, e todos os que têm atribuições de direcção e são pagos pelo contribuinte), quantas vezes decidiram zangar-se com os seus subordinados, a benefício dos estranhos a quem deveriam servir, que não são os mesmos que estão sob a sua alçada?
É na maneira como se encara o abusozinho anódino que está a chave. Porque, ao contrário do que diz o bordão, quem pode o menos acaba por poder o mais.
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