Ídolos tecnológicos com pés de barro?
Em 2015, os órfãos da figura tutelar que era Steve Jobs receberam um estímulo na forma de uma Steve Jobs no feminino e orientada para as Ciências da Saúde. Elizabeth Holmes, uma jovem empresária que deixou o seu curso em engenharia química em Stanford (que foste tu fazer Liz?...) para fundar a Theranos, uma empresa dedicada a produzir testes sanguíneos rápidos e baratos e assim revolucionar o mercado das análises clínicas.
Aquilo que levou às comparações com Steve Jobs foram a ambição e, aparentemente, um gosto por roupas pretas e com camisolas de gola alta para não perder tempo a escolher o que vestir. Todo o bom geek gosta destas coisas, especialmente quando resultou numa potencial fortuna pessoal de 4.500 milhões de dólares (cerca de 50% da Theranos, avaliada em 9 mil milhões).
Quando li pela primeira vez as notícias sobre a empresa e Holmes, confesso que fiquei céptico (é o meu estado normal) em relação ao assunto. A maior parte das notícias sobre soluções ou produtos revolucionários costumam ser puro hype criado por jornalistas analfabetos científicos e/ou por economistas do mesmo tipo que investem em tudo o que se mexe com esperança de acertar em cheio (estes costumam ter mais sorte - um sucesso pode muito bem mais que compensar vinte falhanços). Além disso pareceu-me que havia também demasiado entusiasmo em torno da figura de Holmes. Havia ali um odor a 1980's que me caía mal.
Vou-me explicar. A imagem do college dropout (os que abandonam a universidade) para criar a sua empresa solidificou-se com a vaga de empresas de software (e de hardware, embora menos) a surgir em Silicon Valley nos anos 80. A figura mais famosa era naturalmente Bill Gates, embora Steve Jobs tenha vindo a ocupar um pouco a imaginação, embora o tenha feito mais pelo estilo que pela substância. Nessa altura as Tecnologias de Informação estavam ainda na sua infância no que dizia respeito ao seu uso por não especialistas, pelo que a educação formal nesse campo era menos importante que noutros. Sendo assim, alguns autodidactas nessa área podiam tornar-se especialistas reconhecidos sem necessidade de completar os seus estudos. Esta imagem tornou-se quase o ideal romântico do tech entrepreneur.
O problema com isto é que essa imagem ignora os (prováveis) milhares que terão ficado no caminho. Que deixaram os estudos, tentaram a sorte com as suas empresas e, não tendo sucesso nem estudos, terão acabado a virar haburgueres no McDonald's (imagem excessiva, talvez). Noutras áreas que não as IT, esta necessidade de educação formal tornava-se ainda mais importante, dado que haveria pouco a criar e muito a descobrir. Infelizmente, a cultura entrepreneur presta pouca atenção a este aspecto, esquecendo que se a IT é uma criação humana, áreas como a electrónica, biotecnologia, mecânica, etc, resultam de estudar fenómenos naturais e estes precisam de ser compreendidos.
Claro que qualquer pessoa que tenha tido paciência de me ler até aqui entende onde quero chegar: ao sair da universidade, Holmes não se teria preparado convenientemente para a área onde queria actuar. Não quero inferir de imediato tal coisa, mas foi algo em que pensei: dificilmente alguma pessoa aos 19 anos entenderá o suficiente as áreas das Ciências da Saúde e Biotecnologia para criar uma tecnologia tão boa que se torne revolucionária (isto para não falar nas questões regulamentares.
Obviamente que Holmes poderia ser um prodígio técnico capaz de chegar longe com a sua ideia e, após convencer investidores, poderia também contratar o talento (formalmente educado) necessário aos seus objectivos. Isto é lógico. Pela história da Theranos terá conseguido pelo menos entusiasmar várias pessoas importantes (incluindo Kissinger, embora isto nada diga sobre a tecnologia) e terá avançado o suficiente para poder ter impacto quando a sua história se tornou pública. O facto mais famoso foi o contrato que acordou com a rede de farmácias Walgreens para criar centros de análises baseados na sua tecnologia Edison.
Esta era a história até há pouco tempo, quando se começou a noticiar que a Theranos andaria a fazer as análises usando equipamento da concorrência e que dos cerca de 200 testes da empresa, apenas um foi aceite pela Food and Drug Administration (agência dos EUA que regulamenta o uso de equipamento médico, entre outros). Além disso, apesar das mais de 100 patentes da empresa, poucos ou nenhuns métodos de análise teriam sido publicados em jornais científicos com peer review.
Claro que isto em si não significa muito. A Theranos poderá ter apenas ter querido dar passos mais longos que a perna e pode simplesmente precisar de uns tempos para ajustar os seus métodos. Afinal de contas, não estará a tentar começar apenas mais um restaurante, mas quer antes introduzir toda uma tecnologia (e metodologias) que poderão modificar a sua indústria. A forma como surgiu publicamente em 2015 poderá também ter sido uma estratégia para se valorizar e aumentar as potenciais verbas a angariar na sua próxima ronda de financiamento. Tudo isto é possível e será não só possível mas desejável que a Theranos de facto mude a indústria das análises.
Aquilo que parece evidente (a não ser que se seja de facto muito optimista) é que a Theranos - e Holmes por arrasto - serão para já um ídolo com pés de barro. Mesmo que acabem por se levantar e chegar aos píncaros a que a imprensa sensacionalista os colocou, para já poderiam servir de aviso: por muito que estas figuras sejam atraentes, a aposta mais segura para a esmagadora maioria continua a ser uma educação formal.