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Delito de Opinião

História totalmente ficcionada

Paulo Sousa, 15.04.25

Se tivesse veia de ficcionista, escreveria uma história passada à volta do Departamento de Obras Particulares de uma Câmara Municipal de média dimensão. Eu assumiria o papel de narrador. Sabia o percurso de cada uma das pessoas que ali trabalhava, as suas paixões, ambições, ilusões e desilusões. Para colorir uma personagem, acho que é da combinação entre as ilusões e as desilusões de cada uma, que surge o melhor efeito. A dinâmica dentro do Departamento seria também interessante e com potencial para uma história à volta das relações humanas, sem descuidar atenção ao facto de todos os envolvidos serem funcionário públicos.

É fácil de imaginar que, havendo vagar e vontade, a história ganharia vida própria e num de repente já íamos na página trezentos, ou mais. Garantem-me que when there are a will, there are a way, mas é muito mais fácil dizer, do que fazer. Por isso, essa história não irá avançar.

Mas, só para fazer o gosto ao dedo, imaginemos que nesse Departamento de Obras, uma arquitecta que lá trabalhava há uns bons anos, tinha, desde tenra idade, entendido que aquela quimera do homem essencialmente bom de Rousseau era uma treta. Acreditava muito mais na visão hobbesiana, de um mundo de gente egoísta, que vive permanentemente no “mata-mata”, que o popular filósofo brasileiro, Filipão Scolari, introduziu no jargão nacional. Por isso, não confiava em ninguém. Cada projecto que lhe chegasse à secretária, não passava de uma elaborada tentativa de alguém a tentar enganar. Com o empenho que colocava em cada processo, a Inspecção-Geral da Administração do Território nunca teria nada por onde pegar. Ela sim, poderia fazer reparos à falta de zelo do IGAT.

Quando, ainda tenrinha, ali começou a trabalhar, ouviu dizer que antigamente quando o Departamento achava que uma obra era feia e não a queria aprovar, o então Presidente da Câmara, que para além de ter voz grossa, era nortenho, entrava por ali a dentro a falar de rijo e a dizer palavrões. Quando enquanto alguém lhe tentava mostrar, por A mais B, como o projecto era horrível, ele abria a goela, subia a voz duas oitavas na escala diatónica, e com dois murros na secretária, arrumava o assunto. Mas isso, foi num tempo em que um Presidente da Câmara podia armar-se em defensor dos interesses dos manhosos dos munícipes. Agora a música tinha mudado. Nem era preciso deslocar-se à Secção, pois bastava o Presidente telefonar a perguntar como estava um determinado processo, que um técnico já podia fazer uma participação ao IGAT pelo condicionamento na forma tentada. Prevaricação de titular de cargo público, abuso de poder ou até mesmo corrupção, havia bastante por onde avançar. E ela também já tinha entendido que em toda a Secção, só havia um arquitecto que não ligava à política e todos os outros tinham votado no candidato autárquico derrotado. Aquele arrivista, Presidente de turno, até podia agradar a muitos papalvos, mas se elas apertassem um bocadinho a torneira na aprovação dos projectos, todo o município se iria arreliar com a Câmara e todas as energias negativas iriam acertar no Presidente. Estavam por isso numa posição “à prova de bomba”. Tomara a oposição poder atazanar assim o poder. Mesmo que alguns promotores de projectos lhe argumentassem que elas só estavam ali para fazer cumprir as leis e não para avaliar a estética, não ligavam. Ainda se riam.

Pelo caminho, deveria acrescentar uns episódios em que aquelas arquitectas trouxessem para a história as suas realidades. Uma mais velha, sentia que a vida, cada vez mais ágil, lhe fugia por entre os dedos, cada vez mais engelhados. Para a obra pudesse ser um romance de época, deveria fazer referência à pandemia. Nessa época tinham embirrado menos com os projectos e com os munícipes. Para começar, enquanto o confinamento durou, ninguém quis investir em imóveis. Depois, durante o tempo em que tudo tinha de andar com máscara, os fregueses desdentados pareciam mais dignos e os bonitos incomodavam muito menos. Foi um tempo que deixou saudades, parecia quase um sonho.

Há falta de casas? As casas estão muito caras, também porque os processos são muito demorados e perder tempo é perder dinheiro? Quero lá saber!, pensava. Podia ser demasiado frágil e submissa na vida pessoal, mas era satisfatório sentir-se entrincheirada entre as alíneas do RGEU, esse nobre regulamento do tempo do fascismo, que nem Abril, nem Bruxelas conseguiram domesticar. Era uma existência pequenina, é verdade. Ali sentada naquela sala escura e esconsa, mas sentia-se bem. Ali mandava ela. E não lhe venham falar da síndrome do pequeno poder ou de agressividade deslocada, que o número das denuncias ao IGAT é o que tem memorizado no telemóvel como número de emergência.

Imberbe, talvez incapaz, mas tudo isto é a mais pura das ficções.

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