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Delito de Opinião

Grandes romances (38)

Pedro Correia, 30.07.21

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ESPLENDOR NAS BRUMAS

Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio

 

«Quando penso no mar, o mar regressa / A certa forma que só teve em mim - / Que onde ele acaba, o coração começa.»

Vitorino Nemésio

 

Cada época produz o seu romance de eleição. Em Portugal, no século XX, nenhum foi tão envolvente e tentacular como esta saga de duas famílias que se cruzam no Faial naqueles anos crepusculares da I Guerra Mundial, estava Sidónio Pais no poder em Lisboa. Ilha-postal, ilha-refúgio, ilha-prisão. Separada do vizinho Pico por um canal de águas revoltas que acaba por ditar o destino dos faialenses. Nem a felicidade perdura para quem lá permanece nem uma felicidade alternativa sorri a quem dali se evade. Porque, mesmo à distância, é impossível escapar ao sortilégio das raízes - sina de quem teve berço naquelas brumas.

Margarida Clark Dulmo é pouco mais que uma adolescente, mas já tem noção de tudo isto. Nela convergem dois apelidos ilustres: os Clarks de óbvia matriz britânica, detentores da firma Clark & Sons; e os Dulmos, ainda aparentados com a nobreza flamenga, ali fundeados desde os tempos do povoamento pioneiro, «aves do Faial há mais de quatro séculos, como os milhafres e os cagarros». Com mais pergaminhos que posses, uns e outros, naquele recanto atlântico onde chegavam remotos ecos da guerra que atroava o globo.

Na galeria das personagens femininas da literatura portuguesa, Margarida ocupa lugar de topo. Tão jovem ainda e já lhe pesa nos ombros a responsabilidade de salvar os móveis da família e funcionar como traço de união entre os dois ramos desavindos. Enquanto sonha escapar ao fadário da mãe e da desaparecida avó, ambas amarradas a casamentos amargurados. Se é a ilha natal a impor-lhe essa cruz, ela tudo fará para abandonar a ilha. Evitando as armadilhas do amor, se for preciso.

 

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Vitorino Nemésio (1901-1978) transportou durante cerca de vinte anos esta história, fascinado pela figura de Margarida Dulmo - que teve existência real, com outro nome - até a passar para o papel, já fisicamente distante da sua pátria açoriana a que afinal foi regressando uma vez e outra. 

Estava consciente de que tinha potencial para se tornar num marco da literatura portuguesa - pela arquitectura da prosa, pela exuberância do estilo, pela espessura das personagens e pela densidade do enredo, com um fôlego raro nas nossas letras. 

Poeta, professor, ficcionista, ensaísta, crítico, cronista, biógrafo, historiador, pedagogo e conferencista, Nemésio era um magnífico narrador, mestre da expressão verbal que seduziu os portugueses na primeira metade dos anos 70 com uma série de programas da RTP intitulados Se Bem me Lembro. Só esta popularidade granjeada na década final da vida lhe permitiu resgatar do esquecimento o seu único romance, que fora impresso em 1944, andava o mundo envolvido noutra guerra. Poucos o leram, quase nenhum crítico reparou naquela prosa do «mais moderno dos nossos clássicos e o mais clássico dos nossos modernos», na lapidar definição de David Mourão-Ferreira.

É uma obra de perfeição formal inatacável. E uma admirável declaração de amor aos Açores. Em forma de romance clássico, que honra a melhor tradição deste género literário e se assume como um dos momentos cimeiros da ficção portuguesa de todos os tempos.

 

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Mau Tempo no Canal contém uma narrativa deslocada da sua época, fragmentada entre duas escolas literárias então em voga: a da revista Presença, que enaltecia a vertente psicológica, e a do Novo Cancioneiro, militante da temática social. Para os primeiros, só o sujeito importava; para os segundos, nada mais havia senão o objecto com ideologia em fundo. E tudo girava em função destas etiquetas, daí o silêncio em torno deste desconcertante livro não-alinhado, «romance ao mesmo tempo realista e simbólico, de situações e de atmosferas, de costumes e de estados de alma», como acentua Mourão-Ferreira.

Foi obra de laboração lenta, iniciada em Bruxelas - onde Nemésio então vivia - no início de 1938. O que viria a ser o capítulo inicial surgiu pela primeira vez em Abril do ano seguinte, nas páginas da Revista de Portugal, sob o título "Um Ciclone nas Ilhas". Cinco anos depois, ao aparecer nas livrarias, foi acolhida com generalizado desinteresse. Ressalvados os elogios que João Gaspar Simões e Albano Nogueira lhe dispensaram, na imprensa contemporânea imperou a indiferença: poucos dos que exerciam crítica nos jornais perceberam estar perante uma obra-prima.

 

O romance rompia com o cânone que impunha o primado da mensagem “social” com ramificações políticas. O mundo do trabalho braçal entrava em força na literatura, com o seu cortejo de humilhados e ofendidos: pouco interessava, para os tutores dessas correntes estéticas, as inquietações românticas de uma jovem burguesa da cidade da Horta com raízes aristocráticas e nascida numa família de proprietários rurais.

Apesar disso, a obra receberia o Prémio Ricardo Malheiro, motivando uma segunda edição em 1945. Mas a terceira só ocorreu em 1963: toda uma geração ficou sem acesso a ela. E mais nove anos decorreram até haver uma quarta, à boleia da inesperada popularidade televisiva do autor. Enquanto livros obviamente menores eram incensados e louvados em sessões contínuas. 

Texto «impregnado de atmosfera marítima» (é ainda David Mourão-Ferreira que o assinala), Mau Tempo no Canal mescla a epopeia de vocação universal com o folhetim de sabor regionalista sem perder coerência no plano estilístico. «Como nas grandes obras de arte de todos os tempos, o acaso não existe em Mau Tempo no Canal. Dos elementos naturais ao bibelot, tudo nos surge impregnado de sentido. Dos textos eruditos por vezes citados ao tagarelar de um homem do povo, sente-se a comunhão na açorianidade», observa José Manuel Garcia, um dos maiores estudiosos de Nemésio.

 

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Margarida Dulmo interpretada por Anabela Morais na série da RTP Mau Tempo no Canal (1989)

 

Além do Faial, «vendada de nuvens e de gaivotas», a acção desenrola-se noutras três ilhas: Pico, São Jorge e Terceira - aqui onde acontece o epílogo, estando o leitor já consciente do tempo decorrido e dos sobressaltos registados desde a cena inicial, em que Margarida conversa com João Garcia, filho de um inimigo de seu pai. O namoro com aquele rapaz de «uma timidez desconcertante» é visto com maus olhos por ambas as famílias, o que marcará as vidas dos dois jovens. Fugaz «esplendor na relva», como o do célebre poema de William Wordsworth. 

Enquanto o delírio bélico devasta o mundo, no exíguo Faial - «terra onde tudo são heranças e negócios» - travam-se conflitos endogâmicos, por vezes no mesmo clã familiar. A vastidão oceânica que emoldura a Horta não dilui, antes intensifica, amores e ódios.

Há fortunas dissipadas, esposas traídas, maridos enganados, juras quebradas, falsos testemunhos. Um incêndio de vastas proporções que devasta uma conhecida mansão da ilha. Toda uma atmosfera social retratada na missa da Matriz, num baile de gala do Real Clube Faialense. E uma epidemia de peste bubónica à solta - a última que o arquipélago dos Açores conheceu. 

Há personagens como o velho Charles William Clark, avô materno de Margarida, e o violento Diogo Dulmo, seu pai, afundado em álcool e dívidas. Há Roberto Clark, o tio londrino idolatrado pela sobrinha que sonha ser enfermeira na capital britânica. E Januário, o pai de João Garcia, obcecado pela vingança. E há as mulheres, todas com o seu rasto de sofrimento: Catarina Clark, mãe da protagonista; Margarida Terra, sua falecida avó, de quem todos dizem ter herdado as feições; Emília, mãe de João, repudiada para sempre.

 

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Neste extraordinário romance, como nas melhores obras de Rudyard Kipling ou Joseph Conrad, a paisagem humana funde-se com a natureza, que adquire características das personagens.

Alguns exemplos:

- «Via-se o Canal ainda amargo, com o Pico negro e cónico ao fundo.» (p. 45 da edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994);

- «Há dois meses que a Horta vivia sob o pesadelo da peste debaixo daquele eterno capote-e-capelo das nuvens que o Pico franzia na garganta.» (p. 101)

- «A baía de Angra estendia-se gris e sonolenta das sombras do Monte Brasil ao molhe do Porto de Pipas.» (p. 326)

 

Margarida, com «aquele vago mistério sempre latente nos seus olhos», rebela-se contra o rumo que lhe estaria traçado desde menina. Desdenha da hipocrisia daquela gente que só vive de aparências. Quer conhecer a vida verdadeira. Refugia-se na casa que os Dulmos têm no Pico, onde cuida do velho criado Manuel, atingido pela peste. Embarca com pescadores, acompanhando-os na caça ao cachalote em páginas dignas de Moby Dick. Recupera das emoções do mar numa furna que serve de abrigo aos baleeiros, já em São Jorge.

Levará ainda mais longe o seu anseio de liberdade ou acabará por satisfazer o pai, que a quer ver casada - mesmo sem amor - com algum herdeiro de gente rica?

A última palavra será dela: ascende deste modo a figura cimeira da literatura portuguesa. Pela arte de um escritor que se revelou profundo conhecedor da sensibilidade feminina. Leitora de romances de Camilo e Júlio Dinis, Margarida torna-se heroína pós-romântica num tempo em que elas pouco mais eram do que figuras decorativas, na ficção como na vida.

Na amurada dum navio, retira do dedo o anel de ouro e esmeraldas que herdara da infausta avó materna e deita-o fora: ficará para sempre sepultado «no mais secreto do mar». É um gesto cheio de simbolismo: assim renega os atavismos sentimentais que tolheram as mulheres da família. O que vier depois será diferente.

Nessas magníficas páginas finais, sempre com o oceano por testemunha, encontra um amigo do perdido namorado, que lhe revela: «O João Garcia afinal só gostou de uma mulher, que foi de si.»  E la nave va: ela nada lamenta, mesmo consciente de que jamais reviverá o instante do esplendor na relva, da glória em flor.

 

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Anteriores textos desta série:

 

A Selva - A grande muralha verde

A Cidade e as Serras - Paris não era uma festa

A Esperança - O apocalipse espanhol

O Malhadinhas - Um hino à vida

Barranco de Cegos - O meu mundo não é deste reino

Para Sempre - Existo, logo penso

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