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Delito de Opinião

Grandes romances (37)

Pedro Correia, 12.06.21

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EXISTO, LOGO PENSO

Para Sempre, de Vergílio Ferreira

 

«O homem é um ser tão extraordinário. O que ele inventa para ver se é eterno.»

(p. 48)

 

A solidão do indivíduo no universo, simbolizada na montanha altaneira e majestosa, obcecou Vergilio Ferreira durante largos anos. Foi tema recorrente na trajectória deste escritor, culminando na obra-prima que o consagrou em definitivo como pensador e ficcionista.

Em Cântico Final (1960) alude à solidão voluntária, imposta por uma doença irreversível. Na magnífica Alegria Breve (1965) apresenta-nos um homem em extrema solidão física, no sentido literal, numa povoação abandonada. Em Para Sempre (1983) estamos perante um caso de solidão ontológica: o protagonista é confrontado com a velhice e o seu cortejo de reminiscências, pessoais e intransmissíveis.

Todos eles - Mário no primeiro romance, Jaime no segundo, Paulo neste - regressam às origens, numa demanda incessante da pureza da infância, dos ecos familiares que o tempo foi dissolvendo, da comunhão com a natureza na sua simplicidade primordial. Conscientes de que cada indivíduo corporiza uma existência irrepetível. Convictos da inapelável indiferença divina perante cada destino humano.

 

Vergílio Ferreira (1916-1996), com sólidas raízes camponesas, nasceu numa aldeia do concelho de Gouveia, na Serra da Estrela - ambiente revisitado ao longo da sua obra, que se prolongou por meio século e em 1992 lhe valeu justamente o Prémio Camões. Ainda menino, puseram-no a estudar no seminário do Fundão, tema central de Manhã Submersa (1954), o mais célebre dos seus romances. Mas tinha vocação de pedagogo, não de sacerdote: viria a dar aulas em várias cidades (Bragança, Faro, Évora, Lisboa), aproveitando cada momento disponível para construir um sólido percurso literário (foi também contista, ensaísta e diarista, além de episódicas incursões na poesia).

No final da década de 40, após publicar o memorável Vagão J, abandonou a corrente neo-realista, que encerra o homem na dimensão social. Vergílio, pelo contrário, coloca o indivíduo no cerne narrativo, elevando o romance ao patamar da filosofia. Todos os seus livros, marcados por uma escrita cada vez mais depurada, foram fornecendo aproximações de resposta à pergunta essencial: confinado nos limites físicos da sua existência, sabendo-se condenado a uma irreparável finitude, que parcela de imortalidade resta ao ser humano confrontado com o silêncio de Deus?

 

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Este é um romance circular. Acaba como começa: com a frase «Para sempre», enquanto lema, legenda e sumário da vida. 

Paulo, bibliotecário aposentado, regressa à aldeia natal talvez no último Agosto da sua vida. Volta a habitar o velho casarão onde crescera, fechado há largos anos, sepultados já os parentes que ali lhe restavam.

Cada odor, cada ruído, cada partícula do cenário (um violino coberto de poeira, uma antiga máquina de costura há muito inactiva) lhe devolve lembranças adormecidas na memória, transportando-o para épocas que viveu outrora, quando todos os sonhos se mantinham intactos e era possível inventar o futuro.

À medida que se sucedem os capítulos, ei-lo mergulhado em diálogos irreais, tendo como interlocutores os fantasmas das gerações precedentes. Todos lhe falam d'além-túmulo, ele vai-se despojando do mundo dos vivos em trânsito contínuo para o reino dos mortos enquanto aos seus olhos se desenrola o prodigioso espectáculo da renovação da natureza na paisagem serrana que lhe serviu de berço e não tardará a servir-lhe de túmulo. Entretanto, está condenado à eternidade possível - aquela que a existência física lhe ditar.

 

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É um livro todo escrito na primeira pessoa do singular. «O silêncio pesa sobre a terra como um augúrio, a luz é intensa como uma treva. Olho-a deslumbrado até à cegueira, quase esquecido de mim. A morte alastra à minha volta no silêncio, sobe pelo meu corpo até aos meus olhos parados. Que é que quer dizer a vida e a vertigem do seu milagre? Onde se gera o espanto e o arrepio do seu alarme? Estou só, esvaziado de tudo. Ideias, projectos, e as súbitas revelações, e o mundo, e a visão original das coisas, a recuperação do seu ser de início mesmo depois de já sabidas, e o encantamento da beleza primordial, onde estão? Só, na nulidade de mim, na frieza linear e vegetativa.» (p. 97 da edição original, Bertrand).

Paulo dialoga consigo mesmo, perdido nas evocações que aquele regresso lhe propicia. Nós, leitores, deciframos o seu pensamento como se fôssemos omniscientes - eis o fascínio da literatura. Não por acaso, grande parte dos capítulos começa com a conjunção copulativa: e é palavra eleita, transmitindo-nos a sensação de fluxo incessante de reflexões.

Solitário, isolado. Mas nós habitamos com ele, partilhamos as espartanas refeições dele, deixa de haver segredos para nós dentro daquelas paredes. 

«Enterrado em livros velhos, em ideias velhas, estou aqui. Sozinho na velha casa, é um casarão, estou aqui. Há um grande silêncio comprimido sobre o mundo, atento escuto uma voz que não vem. Um ralho, um chamamento, um fio que ligue em vida duas presenças humanas. Ou o cântico do vale que nos liga ao universo.» (p. 107)

Percorre os aposentos separados pelo longo corredor, o soalho range, as dobradiças gemem. As casas envelhecem também, mas a um ritmo mais lento do que as pessoas. E este é um romance sobre a velhice. Talvez o mais deslumbrante, centrado neste tema, de toda a literatura portuguesa.

 

A mãe morreu-lhe jovem, embrulhada num espesso véu de loucura. A filha, Xana, afundou-se na droga e mora algures, nem sabe ele bem onde. A vida de Paulo decorreu em Penalva (Guarda), Soeira (Coimbra), Oliveira (Figueira da Foz), Santa Maria (Faro), Vigia (Olhão). Cada vez mais longe das raízes. 

À medida que a narrativa progride, alarga-se o campo das reminiscências, o passado impera, o presente vai-se tornando cada vez mais distante. As velhas tias que o criaram regressam em visita imaginária ao sobrinho devolvido à infância, aprendiz de violinista fazendo soar os acordes da Avé Maria de Schubert.

«Erguido ao alto do estrado, criança mítica no mundo da sordidez e da degradação, estranha vítima imolada à grandeza e ao assombro, a mão procurando no segredo do violino a voz oculta do deslumbramento, sozinho como a majestade e o império, longamente eu tracei na órbita de um astro o diagrama da beleza que encadeia e entontece. Tímida, humilde, ao fundo do salão, tia Luísa escutava também. Por fim a música acabou. Ficámos todos ainda em silêncio, até que a aparição se dissipasse.» (p. 182)

 

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«O veio do expressionismo realista que nos está nalguma massa do sangue encontra em Para Sempre uma expressão dificilmente ultrapassável», assinalou Eduardo Lourenço. Uma das maiores injustiças cometidas na nossa vida literária foi a atribuição, em 1983, do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores a Os Meninos de Ouro, de Agustina Bessa-Luís, surgido também nesse ano mas claramente inferior. 

Do ponto de vista formal, de pura construção romanesca, Para Sempre é um prodígio. Porque toda a acção actual contida nestas páginas decorre em tempo real - equivalente portanto ao tempo que demoraríamos a ler o livro sem interrupções. Vamos comprovando isso com as ocasionais espreitadelas de Paulo ao relógio e com o próprio declinar do dia, ao ritmo a que se processa a leitura.

 

«Abro as vidraças, a montanha ao longe em toda a sua magnitude. E uma pequenez em mim súbito sentida, um pasmo sideral de horizontes.» (p. 20)

Este livro tão tocante, capaz de nos comover nos parágrafos mais inesperados, é uma elegia. Pura poesia em prosa.

Podemos chamar-lhe romance existencialista. Porque a existência surge aqui como apelo vital, basilar e definitivo. Para sempre.

 

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Anteriores textos desta série:

 

A Torre da Barbela - No reino dos mortos-vivos

A Selva - A grande muralha verde

A Cidade e as Serras - Paris não era uma festa

A Esperança - O apocalipse espanhol

O Malhadinhas - Um hino à vida

Barranco de Cegos - O meu mundo não é deste reino

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