Grandes romances (36)
A Parábola dos Cegos, de Pieter Bruegel, o Velho (1568)
O MEU MUNDO NÃO É DESTE REINO
Barranco de Cegos, de Alves Redol
«A sorte é um vento que sopra sempre a favor do mais forte.»
(p. 139)
Urge combater o esquecimento a que este romance vem sendo votado. Porque é uma das mais sólidas e poderosas ficções do século XX escritas no nosso idioma. Uma espécie de O Leopardo à portuguesa: relato de um mundo pronto a ruir e outro prestes a começar, na vastidão rural do Ribatejo. Entre o Ultimato britânico de 1890 e a débil república recém-implantada, entre a aristocracia agrária e a modernidade que se fazia anunciar por fábricas e linhas férreas, despertando o País dum torpor de séculos. Quando Portugal se resumia a Lisboa e a mudança de tutores políticos era comunicada por telégrafo às restantes parcelas do torrão pátrio.
Barranco de Cegos é uma emocionante parábola sobre esta encruzilhada de regimes centrada numa família de agrários na fictícia aldeia de Aldebarã, que foi germinando a partir da casa original, o Palácio da Mãe-do-Sol. O patriarca do clã, Diogo Relvas, entra no século XX com pose e discurso de antigo senhor feudal, amado e temido pelo povo que o serve, mas consciente de que aquele já não é o seu mundo: cabe-lhe gerir o legado do avô Bernardo e do pai João sem ilusões quanto ao rumo do País, antevisto na decadência, enquanto pretende salvaguardar o património familiar da cobiça externa.
Mãe-do-Sol porquê? Esclarece o padre que ali reza missa: «Porque é também nesta casa que o Sol nasce, para quantos vivem do trabalho que os senhores Relvas, verdadeiros fidalgos, distribuem por todos, como pais que são dos pobres, de remediados e até de ricos. Aqui estamos em pleno céu; aqui se faz na terra o que o céu manda. E, por isso, a própria aldeia que esta casa fez, e em boa hora, para os seus servos, tem o nome de Aldebarã, que os antigos consideravam uma das quatro partes em que o céu se divide.» (p. 104 da edição original, Portugália Editora.)
O avô de Diogo, Bernardo Santa-Bárbara Relvas, recebera a alcunha de Chicote - «símbolo de que na vida muito se poderia resolver pela força». O pai, João de Meneses Relvas, tinha duas cabeças de cavalo que mandara embalsamar na maior sala da mansão: «A do baio, em que montara D. Pedro durante as lutas liberais, ofertado em público por adesão de ideias, e a do cavalo branco, branco-porcelana, que pertencera a D. Miguel, o Arcanjo Miguel, durante os dias da Vilafrancada.» (p. 26) Simbolizavam a adesão do clã ao monarca, fosse quem fosse o titular do trono. «Significava que nas manadas da casa haveria sempre cavalos e éguas dignos de reis, mas também que ali se serviria quem viesse em nome da Coroa, sem se perguntar que partido dava os bons-dias no poder.»
Diogo Relvas tem 44 anos quando o romance começa. Viúvo precoce, pai de dois filhos varões e duas filhas, começa a sentir-se inadaptado à época que lhe coube em sorte: preferia ter pertencido à geração do pai. Ou, melhor ainda, à do avô - de quem era o retrato chapado, todos diziam.
Tem um refúgio que herdou de Bernardo: uma torre-mirante anexada ao palácio, reduto que só ele transpõe. Nem uma criada lá entra para arrumações. O povo chama-lhe a Torre dos Quatro Ventos: «cada janela deita para um ponto cardeal e há quatro pontos cardeais donde o vento sopra.» Ali se encerravam também, simbolicamente, quatro segredos das sólidas raízes familiares desses proprietários de toiros bravos criados para correrem nas melhores praças da Península: a objectividade, a coragem no essencial, o amor pela perfeição e a pertinácia.
O palácio fora adquirido «no espólio de um dos companheiros do general Gomes Freire, caído com ele em desonra pública». E o Chicote mandara acrescentar o mirante não só para contemplar o Tejo, «de que o lavrador era apaixonado», mas também para nunca esquecer a virtude da modéstia: «Mobilada com a indigência dos haveres de um pobre, a torre passava a ser o refúgio do chefe da família, a que ele próprio deveria garantir a limpeza, em sinal de humildade e orgulho também» (p. 45)
O homem é inseparável da casa. Esta, em que António Alves Redol (1911-1969) nos introduz, insere-se na galeria das inesquecíveis, ao nível do melhor no género que nos tem dado a literatura. Como o Ramalhete descrito por Eça n' Os Maias. Ou A Casa Grande de Romarigães, de mestre Aquilino. Ou essa originalíssima Torre da Barbela, do romance homónimo de Ruben A.
Barranco de Cegos é expressão bíblica, colhida do Evangelho: «Deixai-os; cegos são e condutores de cegos; e se um cego guia a outro cego, ambos vêm a cair no barranco.» (São Mateus 15, 14)
A cegueira aqui é a de uma família em risco de declínio: Diogo Relvas acaba de enterrar o genro, homem fraco fulminado por uma síncope cardíaca, e considera sem préstimo os filhos, António Inácio e Miguel João. Vai-se distanciando da filha promogénita, a viúva Eugénia Adelaide, e apenas a mais nova, Maria do Pilar, lhe alegra os dias.
Mas só até saber que ela se apaixonara pelo filho dum campino, aprendiz de toureiro.
Aqui desemboca a tragédia que se torna ponto fulcral do romance. Inspirada num caso verídico, o de Carlos Relvas (1838-1894), latifundiário da Golegã que viu uma filha envolvida com um humilde rapaz da lavoura: conseguiu que fosse declarada louca e mandou "emparedar" o jovem, amputando-lhe os órgãos genitais.
Na obra de Redol, a ordem dada ao matador não deixa lugar a dúvidas: «Fá-lo sentir bem a morte. Não tenhas pressa. E corta-lhe as partes à navalha. Corta-lhas e mete-as no estrume.» (p. 315)
Assim era a lei do mais forte no Ribatejo. Com senhores feudais imitando a ira divina do Antigo Testamento. Ironia do destino: Carlos Relvas foi também pai de José Relvas, o homem que proclamou a república na varanda da Câmara Municipal de Lisboa a 5 de Outubro de 1910, exerceu como ministro das Finanças do Governo Provisório (introduzindo o escudo como moeda nacional) e assumiu a fugaz chefia do Executivo em 1919.
A cegueira apodera-se de Portugal, envolto em bancarrota nessa década final do século XIX, tornando o reino pasto da agiotagem internacional. O monarca mal conseguia segurar o trono, o País mal conseguia segurar as suas possessões coloniais, os sucessivos gabinetes governativos mal conseguiam garantir o sustento dos portugueses.
«O Governo procurava um travão para o descalabro, mas estava também a contas com credores que lhe impunham liquidações já vencidas. A falência do Baring, em Inglaterra, prestamista do Estado, fora um dos sinais da crise. Dera-se a inflação, aumentara a circulação fiduciária. Subiam os preços.» (p. 20). Este era o pano de fundo nacional. É extraordinário, percebermos como a História se repete.
Sem destoar, Diogo Relvas mal conseguia assegurar a linha sucessória no seu império agrário, que se estendia ao Alentejo com montados em Ponte de Sor, vinhedos em Borba, terras de semeadura em Estremoz e Cuba. Em todos os seus domínios vigoravam códigos de honra remanescentes de tempos medievais - aplicados a homens e bichos.
«Aos toiros que se mostrarem de sangue frouxo, sucede-lhes pior: capam-nos e amansam-nos, à canga, a canga e aguilhão, pondo-os a lavrar nas tralhoadas. Deixam de ser toiros com fidalguia, dignos de morrerem numa praça de Espanha, ao sol e em luta plena, para acabarem em servos de meia tigela, como essa gentalha maltrapida que vem da Beira para ajudar às mondas e ceifas. E os campinos da casa não os poupam - aos gaibéus e aos toiros degenerados que passam a bois de trabalho.» (pp. 74-75)
Alves Redol conhecia muito bem os temas que destacava na sua ficção. Começando precisamente pela obra de estreia, Gaibéus (1939), retrato palpitante desse mundo de camponeses sem terra que alugavam o suor do corpo para ganharem o pão, desenraizados dos fraguedos de origem. Saga de trabalhadores braçais, introduz na ficção portuguesa o pronome nós - a primeira pessoa tornava-se plural, o herói tornava-se colectivo. Em contraponto à corrente literária então em voga, que fazia da psicologia uma bandeira e do pronome eu um dogma imaculado.
Com Gaibéus, o escritor virou a página: o mundo do trabalho ganhava destaque, interrompendo um longo ciclo de protagonistas ociosos no nosso modernismo literário (d' A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro, em 1914, a Nome de Guerra, de Almada Negreiros, em 1938). Chamaram neo-realismo a esta corrente, cultivada por vários epígonos menores que viriam a desacreditá-la, mas Gaibéus merece lugar de honra como pioneiro num género que nos legou outros títulos imprescindíveis: Casa na Duna, de Carlos de Oliveira (1943); Cerro-Maior, de Manuel da Fonseca (1943); Vindima, de Miguel Torga (1945); O Trigo e o Joio, de Fernando Namora (1954).
Publicado em 1961, Barranco de Cegos é o ponto culminante da obra de Redol - ribatejano de Vila Franca, neto de campino, publicitário de profissão, militante clandestino do Partido Comunista. Um dos melhores romances portugueses dos últimos cem anos. Superando os esquematismos da literatura com forte cunho ideológico, que desenha rígidas fronteiras entre o vício e a virtude. Invadindo até o domínio reservado do romance psicológico, nos capítulos centrados no diário íntimo de Emília Adelaide, em que se desvendam pormenores da turbulenta relação entre Diogo e os filhos.
O patriarca Relvas é um homem atormentado: «meio Deus, meio Lavrador», meio poeta, meio bruxo. Um pouco como o Príncipe de Salina da obra-prima de Lampedusa. Redol retrata-o num misto de repulsa e fascínio, ambiguidade que torna ainda mais densa e complexa esta obra dividida em três partes: "O Livro das Horas Plenas", "O Livro das Horas Amargas" e "O Livro das Horas Absurdas". Como bem observou Mário Dionísio no prefácio à terceira edição (1970), «o que neste romance poderia ser pesado de imobilidade ou de andamento menos ágil anima-se, pelo contrário, de surpresas narrativas ou descritivas que não comprometem nunca a gravidade do contexto.»
Aos poucos, o protagonista vai-se enclausurando naquela torre que permite mirar o Tejo (a que chama mar) e onde os ecos da rua soam cada vez mais esparsos. É uma sociedade em decomposição para o orgulhoso agrário, outrora liberal convicto, mais tarde um conservador impenitente. Foi virando a partir da revolta republicana de 1891, que «meteu medo às pessoas de bem».
É na enigmática torre que decorre outra cena capital do livro, quando Diogo abre uma excepção à regra deixando ali entrar o Rei D. Carlos, de visita à sua propriedade.
«- Um verdadeiro governo nunca poderá ser popular, Majestade. Governar ao gosto do povo é nivelar por baixo. Amo demasiadamente os homens que me servem para lhes permitir a absurda loucura de intervirem nos negócios públicos.
- Na Europa temos de nos resignar...
- Coloque-se Portugal fora da Europa se, porventura, entendermos que a razão está do nosso lado. A verdadeira Europa podemos ser nós...» (p. 209)
O monarca quer conceder-lhe o título de Visconde de Aldebarã, ele recusa com polida firmeza: «Fico-me com o título de rei dos lavradores.»
Na clausura a que se condenou, é o que resta ao neto de Bernardo, desde sempre crente que «há um cavalo na alma de cada homem».
O mundo deste cultor do imobilismo já não era desse reino. Para que nada realmente mude, por vezes é preciso que tudo mude.
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