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Delito de Opinião

Grandes romances (35)

Pedro Correia, 14.05.21

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Aguarela de Bernardo Marques para a edição de 1946

 

UM HINO À VIDA

O Malhadinhas, de Aquilino Ribeiro

 

«Quanto a morrer, a gente só morre quando chega a data assente no livro de Deus.»

(p. 54)

 

É um dos mais longos monólogos da literatura portuguesa. Exercício de estilo arriscado, como trapezista no arame, que o autor supera com distinção. Sem deslizes, sem falhas. E é também, a seu modo, uma lição de História. Desde logo no domínio lexical: aqui estão arquivadas, em prosa viva, incontáveis palavras que há muito deixaram de ter uso corrente. Missão acrescida do exigente ofício da escrita: alargar os horizontes da singela fala quotidiana. Quanto maior for o nosso domínio vocabular, mais elaborado e abrangente será o nosso pensamento. Como forma de resistência a todas as tentativas de aplainar e uniformizar o idioma, estreitando-o em via única.

O Malhadinhas ganhou má fama junto de uma certa intelectualidade urbana pela sua linguagem dissociada das ruas contemporâneas. E valeu a Aquilino Ribeiro (1885-1963) a acusação de só poder ser lido "de dicionário na mão", tantos eram os obscuros vocábulos que inundavam a sua prosa talhada em granito beirão. Nem faltou gente a jurar que ele não sabia escrever de outra maneira - acusação absurda, própria de quem desconhece títulos imprescindíveis da sua obra, como Volfrâmio (1943), que nos narra em tempo real as manigâncias exercidas por ingleses e alemães na disputa do precioso minério, vital para o fabrico de material bélico no decurso da II Guerra Mundial, aproveitando cada qual a seu favor a neutralidade do Portugal de Salazar. Os rurais falam como gente rural, os citadinos falam como gente da cidade, sem o colorido semântico nem a irregular sintaxe dos compatriotas das berças.

Era em nome dos provincianos agrestes que Aquilino escrevia, sabendo que quase só teria leitores urbanos, distantes da geografia sentimental dos seus romances. A estes, revelaria uma certa face oculta de Portugal - distante das agendas oficiais e das colunas jornalísticas. Um país analfabeto, povoado de temores ancestrais e de ritos cuja origem se perdia na escuridão dos séculos. De algum modo se poderá dizer que a sua obra é uma vasta reportagem jornalística ao encontro das vertentes serranas do interior beirão e transmontano que ele conhecia como poucos.

De lá viera, nascido na aldeia de Tabosa do Carregal, concelho de Sernancelhe, baptizado na igreja matriz dos Alhais, concelho de Vila Nova de Paiva, e residente a partir dos 10 anos em Moimenta da Beira antes de entrar no colégio de Lamego para estudos secundários, estava a findar o século. Filho de padre, chegou a frequentar o seminário de Beja, mas não se achou fadado para a vida sacerdotal. Era homem feito quando desembarcou em Lisboa. E só se instalou em definitivo nas imediações da capital, após longos períodos de residência no estrangeiro, a partir de 1932.

Fosse para onde fosse, levava sempre a Beira Alta consigo.

 

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Nosso mais célebre exemplar da ficção pícara, herdeiro legítimo da melhor verve camiliana, O Malhadinhas surgiu inicialmente em 1922, integrado no livro de contos e novelas A Estrada de Santiago. Só mais tarde se autonomizou, acabando por emparelhar desde 1958, ano da fixação do texto definitivo, com outra novela, intitulada Mina de Diamantes. Sempre com a chancela Bertrand, a que o escritor se conservou fiel, sendo retribuído: nunca deixou de figurar como cabeça de cartaz desta editora, tal como Agustina Bessa-Luís se tornou no rosto mais visível da Guimarães e José Saramago manteria uma ligação de décadas à Caminho que se prolonga post mortem.

O Malhadinhas é um fascinante relato na primeira pessoa, em registo memorialístico, da boca de um homem já muito velho que no final do século XIX evoca os tempos da sua juventude, aí pela década de 1840, num reino ainda fracturado entre malhados e miguelistas: soavam ecos da guerra civil que devastou o País e manteve feridas por cicatrizar durante décadas. Homem em maré de confissão: «A minha língua era afiada como a faca que trazia à cinta.»

Relato oral, claro - de uma oralidade inserida na escrita e marcando-a por inteiro. Este narrador, almocreve de profissão, mal sabia "juntar letras" mas era muito solto na fala. Dotado dum peculiar sentido de humor, toma sem cerimónia o leitor por cúmplice e confidente. Desde a frase de abertura, que marca logo o tom: «Quando comecei a pôr vulto no mundo, meus fidalgos, era a porca da vida outra droga.»

Os célebres "arcaísmos" e "regionalismos" do escritor, suscitados sobretudo a propósito deste curto romance, estão afinal bem justificados. A matéria-prima ficcional é o discurso directo de alguém que apenas recebeu instrução na escola da vida e pertencia a um mundo que já mal sobrevivia no próprio instante em que o autor desenrolava o novelo da sua prosa. Não era sequer uma questão de estilo literário: era uma questão de elementar autenticidade. Acrescida da tendência que Aquilino sempre revelou para cultivar neologismos que lhe serviam de tempero à escrita. Muito do vernáculo existente nestas páginas decorre do engenho do autor, capaz de mesclar sabiamente o rústico e o erudito, às vezes na mesma frase.

 

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O Malhadinhas, ao contrário do que recomendavam os tais enfadados, não deve ser lido de dicionário na mão, gesto que emperra a leitura. Há termos que ignoramos, claro. Mas o significado apreende-se pelo contexto e faz todo o sentido: em Aquilino a música da fala é tão relevante como a letra. Toda esta arquitectura verbal tem uma inatacável lógica. 

Acompanhamos o tio António Malhadas de feira em feira, de lugarejo em lugarejo. Quem é ele? Diz o próprio: «um pobre de Cristo, um zé-ninguém, um côdeas que puxa uma besta de carga pelo rabeiro». (p. 33, Bertrand, 2018)

Atravessamos na sua companhia serras infestadas por lobos que chegam a fazer-lhe um cerco. Caminhamos sob violenta tempestade de neve - um dos pontos altos da obra. Levamos farnel e varapau, parceiros inseparáveis dos viandantes. Pernoitamos em palheiros. Abancamos à mesa de pobres e remediados. Partilhamos com ele «um quartilho com duas dentadas de broa». Seguimo-lo quando se transvia por folguedos e bailaricos. Testemunhamos como era homem de jamais virar cara à luta: exímio no jogo do pau, malhava nos costados de quem ousasse fazer-lhe afronta.

 

É uma digressão transversal no País, de Barrelas (nome antigo da aldeia que em 1883 passou a denominar-se Vila Nova de Paiva) a Aveiro, por montes e vales, «à cata de sal, de sardinha e outros géneros». Mas com António Malhadas não viajamos só no espaço: viajamos também no tempo, percorrendo esse Portugal rural pós-absolutista onde o caminho de ferro não passava de miragem e o meio de transporte mais usual era o dorso de um burro. 

«Trata-se, acima de tudo, de um hino à vida», observa Maria Alzira Seixo num prefácio à mais recente edição da obra, ressaltando as virtudes deste inimitável texto, repassado de aforismos castiços, destinados a reverberar-nos na memória. 

Destaco alguns:

«O receio não é cobardia.»

«Se queres aprender a orar, entra no mar.»

«A apressada pergunta, vagarosa resposta.»

«A fruta mais saborosa tem caroço no meio.»

«Casa em que caibas, vinha quanto bebas, terra quanta vejas.»

«A um homem ruivo e mulher barbuda de longe os saúda.»

«Muitas vezes ouvi dizer a minha mãe: roga ao santo até passar o barranco.»

«Tomara-me eu outra vez com vinte anos e saber o que hoje sei! Diabos me levem se não fosse rei.»

«Fui à cama dizer adeus à mulher, só adeus, que um cavalo que há-de ir à guerra nem corra lobo, nem o abane égua.»

«Beijei e gozei, que a carne é pecadora e ninguém, a não ser santinho carunchoso, que não de pau carunchoso, sabe resistir aos lambiscos do pecado.»

Volta e meia, deparamos com expressões admiráveis: «a água que era um Douro» (p. 44); «se acordas as pedras, temos o caldo entornado» (p. 50); «eu ia gelado até à alma» (p. 108).

 

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Eis-nos perante um romance percorrido de lés a lés por uma transbordante sensualidade e um sentido de humor invulgar nas letras pátrias, que padecem de excesso de sisudez, tomando-se demasiado a sério. 

Repare-se neste naco de prosa: «O ofício de galhudo, por fora de conta e risco, o maior galhudo que a rosa do sol cobria, é que o tornava azedo e maldizente» (p. 66). Ou nesta cena de sexo, talvez a mais breve da nossa literatura: «Ali, sem mais testemunhas que Deus do céu, depois de breve briga - tinha de ser - da coitanaxa fiz dona.» (p. 52)

 

Muito entrado nos anos, viúvo da sua Brízida e com o fôlego de viajante já extinto, Malhadas desvenda-nos a alma sem lamúria, como quem contempla um pôr-do-sol: «Agora, m'amigos, estou caduco, nem para calço de panela tenho préstimo.» (p. 116) E desabafa, com um resto da verve que lhe foi sobrando: «O mundo já o encontrei assim formado. Não era o filho de meu pai, com poucas letras e nenhumas posses, que era capaz de o consertar.» (p.86)

Pronto a atravessar «duma margem para a outra do negro rio» (p. 125). Mas ei-lo, no fim da jornada, tocado de imortalidade. Como herói desta obra-prima da ficção em língua portuguesa. 

 

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Anteriores textos desta série:

 

A Tia Julia e o Escrevedor - Ouvir para crer

Os Teus Passos na Escada - O medo nunca morre

A Torre da Barbela - No reino dos mortos-vivos

A Selva - A grande muralha verde

A Cidade e as Serras - Paris não era uma festa

A Esperança - O apocalipse espanhol

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