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Delito de Opinião

Grandes romances (32)

Pedro Correia, 16.04.21

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 A GRANDE MURALHA VERDE

A Selva, de Ferreira de Castro

 

Nenhum romance português foi tão lido por estrangeiros como este. Traduzido para castelhano, alemão, italiano, inglês e francês poucos anos após ter sido publicado, em Maio de 1930, rendeu ao seu autor fama mundial e um desafogo financeiro que lhe permitiu abandonar o jornalismo, tornando-se escritor profissional. Quando foi impressa a 10.ª edição portuguesa, em 1945, já meio milhão de exemplares haviam sido vendidos além-fronteiras e 42 mil por cá.

Em 1973, José Maria Ferreira de Castro (1898-1974) era, precisamente com A Selva, um dos dez romancistas mais traduzidos no mundo, segundo revelou a Unesco. Galardoado em 1970 com o grande prémio Águia de Ouro Internacional no Festival do Livro de Nice, mereceu o voto unânime de um júri presidido por Isaac Singer e que integrava Gore Vidal, Hervé Bazin e Miguel Ángel Asturias. No ano seguinte, em Paris, recebeu o Prémio da Latinidade, partilhado com Jorge Amado e Eugenio Montale. Em parceria com o autor de Jubiabá, seu amigo, chegara a ser proposto em 1968 para o Nobel da Literatura por iniciativa da União Brasileira de Escritores.

Destino de sonho para um menino pobre, nascido numa aldeia do concelho de Oliveira de Azeméis. Órfão de pai aos oito anos, em 1911 viu-se forçado a rumar ao Brasil, onde vivia um tio. Foi sozinho, num navio que o conduziu de Leixões a Belém do Pará. Ali aguardava-o uma vida agreste, duríssima: aos 13 anos, já trabalhava numa plantação de borracha, então um dos produtos mais cobiçados à escala planetária.

«Quatro anos iguais a uma noite escuríssima, onde não é possível acender luz alguma.» Assim o escritor recordaria esses tempos em que se tornou adulto ainda menino, num seringal situado nas imediações de Humaitá, no interior do estado do Amazonas. Dessa experiência trouxe material para mais de meio século de labor literário. Ao ponto de muitos brasileiros ainda o considerarem um dos seus, não lhes faltando razão para isso: Ferreira de Castro contribuiu mais para estreitar os laços entre o país natal e a nação irmã - onde viveu oito anos, até 1919, e que visitaria várias vezes depois - do que todas as entidades oficiais nas duas margens do Atlântico.

 

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A Selva é um livro precursor. Num tempo em que ninguém falava em ecologia, faz da floresta a personagem principal. Capítulo após capítulo, ela arrebata-nos com o seu encanto, o seu sortilégio, o seu feitiço, a sua solidão imensa. A floresta amazónica, pulmão do planeta, é berço de incontáveis vidas. Mas também túmulo de intrépidos e de incautos. Ali todo o cuidado é pouco. E o respeito quase sagrado pela natureza, que nestas páginas assume carácter totémico, é vital para a preservação da espécie humana.

Castro conduz-nos pelas fascinantes alamedas deste império vegetal que lhe ficou para sempre impresso na memória. Navegamos no rio Negro até à confluência com o majestoso Amazonas. Desembarcamos em Manaus, capital amazónica, «cidade onde o homem impusera à natureza virgem muitas das conquistas do seu espírito». Passamos por vilas e cidades que reproduzem as origens dos seus primeiros desbravadores: Santarém, Alenquer, Óbidos, Borba, Faro...

Guiados por ele, assistimos à ganância do homem, o maior predador de todos os animais. Testemunhamos a exploração de mão-de-obra quase escrava, visando os miseráveis que ali aportavam dos confins do Maranhão ou do Ceará e cedo viam o sonho transformar-se em pesadelo.

Vamos com Alberto, português de 26 anos, tardio estudante de Direito, refugiado político no Brasil. Militante anti-republicano, envolveu-se nas conspirações que conduziram à proclamação da efémera Monarquia do Norte, em 1919. A fuga de navio permitiu-lhe escapar ao calabouço, ignorando que acabaria aprisionado ao ar livre, na infernal Fazenda Paraíso, junto ao rio Madeira, rasgando estradas e desbravando troços de floresta às ordens de um desses novos senhores feudais. Ele, burguês letrado, irmanava-se aos humildes trabalhadores braçais, afogados em suor e desespero: a vida ensina-lhe uma lição que jamais encontrará em livro algum.

 

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«Tudo selva, selva por toda a parte, fechado o horizonte na primeira curva do monstro líquido.» Lá seguimos com ele, rio acima, rendidos à insuficiência humana no contraste com o denso império vegetal que se estende quase das bermas do Atlântico até aos confins fronteiriços com a Bolívia e o Peru num trajecto de 40 dias.

Nada a ver com a escala lusitana.

«Evocado dali, Portugal era uma quimera, não existia talvez. Pequeno e lá longe, os que o levavam na memória não estavam certos se viviam em realidade ou se sonhavam com as narrações dos que tinham voltado das Descobertas.» (45.ª edição, 2019, Cavalo de Ferro, p. 72)

Neste sentido, A Selva é uma anti-epopeia. Espécie de reverso d' Os Lusíadas. Nada de navegações gloriosas por mares incógnitos: apenas o combate quotidiano pela sobrevivência, entre o esplendor da paisagem e a degradação humana. Com o alcoolismo a devastar corpos fatigados - «a cachaça era como morfina na vida áspera do seringueiro.» A permanente ameaça dos índios ainda em estado selvagem em busca de cabeças humanas para rituais tétricos. Alusões a pedofilia e necrofilia. E o bestialismo irrompendo naquele cenário sem mulheres, como Alberto descobriu, estupefacto, na noite em que viu algo nunca imaginado: «A égua fora levada para ali e junto dela estava Agostinho, trepando num caixote, com a roupa descomposta.»

O bicho-homem, animal entre os animais. Entre as antas, «a melhor carne que tem o Amazonas». Entre os urubus negros, «cínicos devoradores de cadáveres». E a paca, a cotia, o tamanduá-bandeira, o tatu «com a sua couraça esbranquiçada e focinho agudo perfurador de todas as terras». E o jacaré, senhor dos rios. E a gigantesca sucuriju, cobra também presente nas águas e que «dum só golpe se lançava sobre cães e vitelos descuidados». E legiões de insectos, voadores e rastejantes. Sem esquecer o sapo-boi, cujos urros lancinantes atroam na solidão nocturna daquela «grande muralha verde» que parecia ter vontade própria, transformando seres humanos em títeres submetidos à sua força despótica.

«Ali não existia mesmo a árvore. Existia o emaranhado vegetal, louco, desorientado, voraz, com alma e garras de fera esfomeada.» (p. 144)

 

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Ferreira de Castro entre Eugenio Montale e Jorge Amado (Paris, 1971)

 

Espantoso, o conhecimento que o autor revela da floresta amazónica, conferindo plena validade ao título. António José Saraiva tinha razão ao mencionar Ferreira de Castro como «o primeiro escritor português que não usa gravata». Definição que ajuda a explicar a popularidade deste autor que sobrevive quando muitos dos que recusaram integrá-lo no cânone literário ungido pela Academia desapareceram sem deixar rasto.

Centrado no milenar confronto entre o homem e a natureza, A Selva lê-se como um romance de aventuras - e, à margem de qualquer rótulo erudito, é assim que apetece classificá-lo. Foi também isto que fascinou alguns dos seus leitores mais célebres. Agustina Bessa-Luís, que era parca em elogios, chamou-lhe «obra-prima» e confessou ter-lhe despertado a vocação literária. «Um clássico de nosso tempo, um desses poucos livros definitivos», sentenciou Jorge Amado. «Admirável romance», observou Stefan Zweig já no exílio brasileiro. «Livro inesquecível», salientou Albert Camus ao ler a célebre tradução francesa da obra, assinada em 1938 por Blaise Cendrars - que logo os invejosos cá do burgo, na sua eterna maledicência, se apressaram a dizer que tinha «melhorado muito» a versão original.

 

«A árvore solitária, que borda melancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a sua graça e romântica sugestão e, surgindo em brenha inquietante, impunha-se como um inimigo. Dir-se-ia que a selva tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos os lados.» (p. 97)

Espiavam seringueiros como Firmino, imigrado do sertão naquele desterro sem fim à vista. Espiavam antigos escravos, como o negro Tiago, que trazia a tragédia inscrita no destino e protagoniza a terrífica cena final, de clara inspiração cinematográfica. Espiavam os próprios donos dos seringais, como o ganancioso Juca Tristão, inimigo da liberdade.

Tudo polvilhado com riquíssimo léxico brasileiro, contribuindo - também no plano da linguagem - para tornar este romance numa obra ímpar da literatura portuguesa. 

 

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«Eu devia este livro a essa majestade verde, soberba e enigmática que é a selva amazónica», confessa Castro nas breves linhas introdutórias do romance, escrito a uma velocidade vertiginosa - nas escassas horas vagas deste jornalista que chegou a presidir ao Sindicato dos Profissionais de Imprensa - entre 9 de Abril e 29 de Novembro de 1929. Recuando à década precedente, àquela árdua adolescência na floresta brasileira, quando «não houve um só dia» em que não desejasse evadir-se para a cidade. 

Aos 31 anos, sentiu-se obrigado a relatar este «drama de homens perante as injustiças de outros homens e as violências da natureza». E a nós, que vivemos em atmosfera de conforto, pôs-nos a par da «luta de cearenses e maranhenses nas florestas da Amazónia» perante a indiferença de quem, «no resto do mundo, se deixa conduzir, veloz e comodamente, num automóvel com rodas de borracha - da borracha que esses homens, humildemente heróicos, tiram à selva misteriosa e implacável».

Alberto, enfim amnistiado pelas autoridades republicanas, recebe a boa notícia por carta da mãe e prepara-se para voltar à pátria. Vai um homem mudado. Acima das paixões políticas, quer «justiça para todos»: passou a sonhar com um mundo onde não seja necessário ninguém degradar-se para subsistir. Um mundo onde a lei da selva não predomine fora daquela imensa muralha amazónica, «desse verde eterno e sempre igual».

 

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Anteriores textos desta série:

 

Sinais de Fogo - Do amor e da guerra

A Escola do Paraíso - Esta Lisboa de outras eras

O Anjo Mudo - Sem tecto, entre ruínas

A Tia Julia e o Escrevedor - Ouvir para crer

Os Teus Passos na Escada - O medo nunca morre

A Torre da Barbela - No reino dos mortos-vivos

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