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Delito de Opinião

Grandes romances (31)

Pedro Correia, 09.04.21

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NO REINO DOS MORTOS-VIVOS

A Torre da Barbela, de Ruben A.

 

«Tinha que acreditar no mundo do impossível e mover-me lá dentro com os arrepios da tragédia colectiva.» (p. 262)

 

Tradição e modernidade. Cosmopolitismo clássico e absurdo contemporâneo. Vistas largas, contemplando a História, mas satirizando gestas patrioteiras na estreiteza do presente.

Tudo isto se conjuga nas páginas d' A Torre da Barbela, título fundamental da nossa ficção literária do século XX, capaz de questionar a identidade nacional até aos alicerces com tintas surrealistas mescladas de prosa barroca, cruzando arcaísmos com neologismos sintácticos e vocabulares. Enquanto desperta sorrisos no surpreendido leitor.

Este romance nasceu da paixão simultânea de Ruben Alfredo Andresen Leitão (1920-1975) pela investigação histórica e pelas terras encantadas da Ribeira Lima que o levaram a estabelecer residência de Verão na aldeia de Carreço, a norte de Viana do Castelo. Fantasia e factos harmonizam-se aqui em comunhão perfeita. Precedendo em duas décadas a vaga imparável do romance histórico e antecipando o próprio "realismo mágico" que Gabriel García Márquez celebraria três anos depois, com Cem Anos de Solidão.

 

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Cultor de paradoxos, Ruben associa lendas e trovas medievais a inovadoras técnicas romanescas neste livro inimitável - inventando palavras, suprimindo a cronologia, impondo anacronismos. Mas sem nunca perder o fio à meada. Aqui rebela-se contra «um destino embebido de fatalismo» enquanto declara amor a Portugal, onde tantas vezes se sentiu estrangeiro. Acabaria por morrer em Londres, ficando sepultado em Carreço por seu pedido expresso.

Nas palavras do autor, A Torre da Barbela «é o drama lírico da raça portuguesa através de oito séculos de história pátria, com altos e baixos, amores e ódios, mortes e vidas, dias e noites, inteligentes e estúpidos».

Situada na margem esquerda do Lima, entre Vitorino das Donas e Paço de Vitorino, a fictícia Barbela é «a única torre triangular da Península Ibérica» cuja existência remonta aos tempos da fundação da nacionalidade, sendo-lhe agregado um solar seiscentista. De dia, rondam ali turistas seduzidos pelo panorama e pelo património. Mal a noite cai, os corpos dão lugar aos espíritos: fantasmas de séculos diferentes unidos por laços de parentesco abandonam pedras tumulares e convivem em surreais e catárticas sessões de cavaqueira. Pura reinvenção do microcosmo lusitano: é como se víssemos Portugal deitado no divã do doutor Freud.

 

«Do alto daquela Torre, outrora de menagem, estendia-se um país inteiro, seiva virgem de uma nação. Toda a História se abria com a paisagem.» Eis a Barbela, apresentada nas páginas iniciais. Paredes ainda intactas, mas já sem fidalgos lá dentro.

Os donos contemporâneos, vivendo longe, mal a visitam. «Dos Barbelas nem cheiro. Nada. Apenas um caseiro papagueando frases» aos visitantes que a demandam.

Um deles, africanista com fortuna argamassada em Angola, propõe-se comprar aquilo: «Rapo da carteira e pago já! (...) Vai tudo abaixo. Mesmo a Torre, para que é preciso isso? Ainda queria que me explicassem essas coisas da História. Para que é que serve? É preciso é milho, feijão, porco, angolares, comprar enquanto o escudo está desvalorizado, comprar tudo. Eu cá tratarei de transportar este monumento nacional para outra banda. Ficava bem em Campo de Ourique onde tenho lá uns prédios de rendimento.» (p. 318)

 

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A vida verdadeira é a vida de fantasia, iniciada «todas as tardes, ao cair do crepúsculo», quando dos sarcófagos emergem o Cavaleiro da Barbela, gabando-se de ser «a pessoa mais lendária do mundo», e Dom Raymundo, primo colateral de Dom Afonso Henriques e trovador medieval, alvo da paixão de sua prima, a beata Dona Urraca, «alucinado a dar ordens gagás a quem lhe passava ao largo».

E a bela Madeleine, do ramo francês da família, em visita de férias ao Alto Minho, onde vai sobressaltando corações. E Dom Mendo, «o primeiro nauta dos Barbelas a dobrar o Cabo da Boa Esperança». E Dona Mafalda, habituée dos chás galantes do século XVIII. E a princesa Brites, que «tinha sido célebre no século XIX», imortalizada num busto de Rodin. E o menino Sancho, morto-vivo prematuro, putativo filho do Abade de Moutosa. E a esbelta Dona Mafalda, que terá sido favorita de Dom João V. E os aventureiros Dom Pero e Dom Payo, «mal chegados da viagem à Índia e às terras do Prestes João».

E há uma bruxa a infundir receios ancestrais. E até um bobo castrado, oriundo de Itália.

Sem esquecer o fantasma mais recente, o Dr. Meirinho, «conhecido nas listas de admissão à Universidade de Coimbra como Ramiro Barbela de Souza Moutinho e Silva Mayor, visconde da Ponte Seca». Protótipo do burocrata do Estado Novo, que se gaba de não ter lido um livro desde o último dia de aulas: «Tenho no meu palmaré 724 horas de aeroporto. Inaugurações, homenagens - e isto nos meus cinco, dez, quinze, vinte, vinte e cinco anos de posse no respectivo cargo.» Dotado de uma vacuidade sem mácula, especialista em coisa nenhuma: «Escrever discursos de inauguração e agradecimento, ir às diversas províncias e recomendar a prática mais consentânea em qualquer grave emergência. Condecorar. Programar. Anunciar.» (p. 48) Alma gémea dum Acácio ou dum Pacheco, faz questão de proclamar: «Aqui, ou em qualquer parte, eu não transijo com os princípios morais que me foram transmitidos pelos meus maiores. Perante o perigo a intransigência, perante a ordem o bem comum.» Em óbvia paródia à retórica oficial do salazarismo.

 

Os tempos históricos vão-se alternando através destas vozes dispersas, protagonistas de uma exuberante sinfonia coral: «Era o inédito que se apoderava daquele grupo de pessoas da família Barbela. Para eles, o criar inédito era o dia a dia.» Naquele país de sessenta, «onde os mortos são vivos e os vivos são mortos», como assinalou com argúcia o ensaísta Mário Sacramento, cultor do realismo social rendido a esta arcaica trama romanesca que não cessa de piscar um olho aos tempos modernos.

Surgida num país aprisionado, A Torre da Barbela é também um grito desassombrado contra o cinzento destino pátrio, aqui simbolizado no Cavaleiro, supostamente inspirado no poeta Ruy Cinatti, um dos amigos literários do autor. «Bem ou mal, queria a sua liberdade. Foram séculos de cumprir certinho e bem educadinho uma vida de empastelamento sem lhe perguntarem o que queria ou o que pensava. Não suportava mais essa independência animal, essa vida de cavalariça histórica que lhe impingiam rotineiramente.» (p. 216)

Mortos ressuscitados, vivos mumificados, espectros reais introduzindo-se numa história povoada de fantasmas - proeza invulgar na nossa literatura. Originalíssimo retrato metafórico da megalomania lusa, alternando com ciclos depressivos nesta nação tão ciclotímica.

 

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Foi um romance com vida atribulada: enfrentou a recusa inicial de nove editoras antes de ver a luz do dia, em 1964. Havia ali vanguardismo a mais para a proverbial miopia das elites portuguesas: a Arcádia fechou-lhe a porta, com «parecer desfavorável à sua publicação». O mesmo fizeram a Europa-América e a Dom Quixote, por exemplo.

Acabou por vir a público com a modesta chancela da Livraria Portugal. Em 1966, receberia uma distinção tardia mas retemperadora: o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa, que anos antes distinguira Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Vitorino Nemésio e Fernando Namora, entre outros nomes consagrados.

Se há livros que permanecem imunes ao desgaste do tempo, este é um deles. Ruben A. Leitão, que nos legou esta obra-prima e é hoje nome de modesta rua lisboeta, viveu poucos anos mais, espartilhado entre uma ditadura que detestava e uma revolução que cedo o desiludiu com o seu credo extremista. David Mourão-Ferreira traçou-lhe um justo epitáfio em forma de bilhete-postal impresso na fotobiografia O Mundo de Ruben A. (Assírio & Alvim, 1996): «Chegar, partir: que outros verbos conjugaste mais amiúde? Daí a preocupação de pouco peso na bagagem, até mesmo no passaporte. Uma só letra servia-te de andaina e de apelido. Mas era - tinha de ser - a primeira do alfabeto.»

 

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Anteriores textos desta série:

 

Os Maias - O século XIX aqui tão perto

Sinais de Fogo - Do amor e da guerra

A Escola do Paraíso - Esta Lisboa de outras eras

O Anjo Mudo - Sem tecto, entre ruínas

A Tia Julia e o Escrevedor - Ouvir para crer

Os Teus Passos na Escada - O medo nunca morre

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