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Delito de Opinião

Grandes romances (30)

Pedro Correia, 23.03.21

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O MEDO NUNCA DORME

Os Teus Passos na Escada, de Antonio Muñoz Molina

 

«A voz dentro de mim que está sempre a contar à Cecilia as coisas que me acontecem ficou agora em silêncio.» (p. 167)

 

É um livro em que parece não acontecer nada. Um espanhol de meia idade que durante vários anos foi executivo empresarial em Nova Iorque decide refugiar-se em Lisboa, num antigo apartamento remodelado, às Janelas Verdes, de onde se avista o Tejo e o ameno bulício do cais. Aguarda pela chegada da mulher, ainda nos EUA. Ele veio primeiro para tratar da instalação neste novo país de acolhimento. Testemunharam ao vivo e sentiram na pele o 11 de Setembro. A vida, para eles, não voltou a ser a mesma. E Lisboa surgiu, anos depois, como porto seguro num mundo em aparente desagregação, golpeado pelo espectro do terrorismo global, por um sistema financeiro tão consistente como uma bolha de sabão e por inexoráveis alterações climáticas que ameaçam colocar-nos no limiar da sobrevivência.

Uma questão o assalta desde o trauma experimentado com a queda das Torres Gémeas: «Como podemos manter a lucidez de saber o que é imprescindível?»

 

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Há um reconfortante contraste entre Nova Iorque e Lisboa. A vida aqui é muito mais serena e pausada. O antigo executivo, prematuramente aposentado, desfruta desta atmosfera citadina envolta em aura provinciana, onde «as coisas acontecem a um ritmo muito mais lento». Há um rio como o Hudson, uma ponte como a George Washington, ouve-se um sino de igreja a dar as horas, como o da Riverside Church.

Podia ter aqui uma existência quase feliz se não fosse a persistente ausência da mulher, o ruído constante dos aviões na aproximação à pista da Portela («o jornal diz que aterram 40 aviões por hora no aeroporto de Lisboa») e a angústia que lhe suscita cada noticiário televisivo, reforçando a sensação de finis mundi. Mas as laranjas daqui «têm um sabor mais intenso e doce», o café «é mais suave e a manhã mais luminosa», como ele confirma nos seus passeios diários com a cadela Luria. «Em qualquer esquina deste bairro há um restaurante ou uma pastelaria de comida barata e saborosa», como a Mascote do Sacramento, onde se come «o melhor bacalhau à Brás de Lisboa».

Nesta espera, que pode prolongar-se mais do que o previsto, dedica grande parte dos dias à leitura. Tem os livros para ler na cama, os que transporta na mochila e os que leva no bolso do casaco. O que mais o absorve são as memórias do almirante Richard Byrd sobre a sua reclusão de seis meses, em 1933, numa cabana subterrânea da Antárctida. Experiência inédita que quase lhe custou a vida.

«O medo nunca dorme, somos os descendentes de organismos primitivos e de animais aos quais isso a que chamamos medo permitiu sobreviver», ensinou-lhe a mulher, Cecilia, cientista especializada na investigação dos mecanismos neuronais que condicionam as emoções humanas.

À medida que se desenrola o fio da narrativa, sempre na primeira pessoa do singular, a capital mais ocidental da Europa vai-se confundindo com as memórias vívidas de Nova Iorque - promissoras de início, sinistras depois. «Estou ali e estou aqui ao mesmo tempo. Agora é então e agora mesmo.»

 

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Este romance onde nada parece acontecer é uma declaração de amor a Lisboa. Uma Lisboa risonha e aberta aos estrangeiros sem perder a sua personalidade muito própria, nesses meses antecedentes à progressão do coronavírus que alastrou da China para o mundo (Os Teus Passos na Escada, edição Relógio d' Água com tradução de Rita Custódio e Àlex Taradellas em 2020, surgiu no ano anterior em Espanha, intitulando-se Tus Pasos en la Escalera no original).

De alguma forma podemos considerá-lo um romance português. Sem aspas. Antonio Muñoz Molina - que já em 1987, com 31 anos, havia publicado O Inverno em Lisboa - lança um olhar amável mas arguto às idiossincrasias desta velha urbe e de quem nela habita. Confirmando que a melhor ficção literária é a que está ancorada num tempo e num lugar, sem renegar coordenadas geográficas e cronológicas.

«Vivo num retiro no interior do outro retiro de Lisboa. Podemos encontrar tudo aquilo de que precisamos para a nossa vida sem caminhar mais de vinte minutos. As frutarias, o talho, a padaria, as pastelarias (...). A largura do mundo exterior cabe nos confins do bairro: os restaurantes indianos ou nepaleses, os de Moçambique, ou de Goa, o Jardim Botânico Tropical com as suas espessuras de bambu, as suas palmeiras altíssimas da Polinésia, os pinheiros do Tibete, as araucárias australianas.» (p. 73)

 

Este homem chamado Bruno (só lhe conheceremos o nome a cinco páginas do fim, numa cena crucial do livro) menciona a todo o instante a mulher ausente. Ao ponto de nos interrogarmos sobre o que tanto fará retardar o seu desembarque em Lisboa, levando o marido a imaginar ouvir «os teus passos na escada» - belíssimo título de um romance que não cessa de nos prender a atenção, como se estivéssemos também ali, aguardando a Cecilia que nunca mais chega, naquele Verão onde tudo parece arder - da Califórnia às florestas da Indonésia, passando pela Amazónia - e que os telediários confirmam como «o mais quente alguma vez registado».

Ele decorou todo o apartamento de Lisboa numa réplica exacta do que tinham em Nova Iorque - talvez com a ilusão de renovar os momentos de fugaz felicidade que partilharam na outra margem do Atlântico, antes do Dia do Apocalipse. E anseia pelo momento em que ela lhe surja à frente, aparentemente convencido de que não perde por esperar.

«Levar-te-ei a uma tasca minúscula de Campo de Ourique para provares um arroz de polvo incomparável. Guiar-te-ei até ficar sem fôlego pelas encostas do bairro da Graça até chegarmos ao miradouro de Nossa Senhora do Monte para que vejas dali toda a cidade, os telhados, as torres brancas das igrejas, o rio e a ponte, o falso Corcovado ou o seu duplo, o horizonte que termina a sudoeste na claridade do mar.» (p. 112) Que escritor português saberia hoje captar tão bem a atmosfera de Lisboa, sem sombra de melancolia ou cinismo, em tão escassas linhas? Numa prosa elegante e límpida, despojada de "exercícios de estilo", confirmando Muñoz Molina como um dos melhores escritores da actualidade.

 

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O espanhol aqui desterrado está prestes a concluir a segunda leitura das memórias de Byrd. Aguardam-no os seis volumes do Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbons - tarefa para durar vários meses. Como náufrago de um navio errante chamado Planeta. «O Robinson Crusoe olhava para o horizonte em busca de uma vela. De todas as cidades em que vivi esta é a que me parece mais bem preparada para uma espera.» Lisboa, cidade-refúgio num dilacerante roteiro de solidão.

Os Teus Passos na Escada  é um magnífico romance sobre as fobias insinuadas nos alçapões do quotidiano, sobre as neuroses fomentadas pela indústria da comunicação, sobre a vertigem depressiva que alastra no inconsciente colectivo deste século tão desencantado.

Sobre a fuga e sobre o medo, que nunca dorme.

É um livro premonitório, surgido pouco antes da Grande Pandemia, antevendo de algum modo o pesadelo em que todos mergulhámos. Náufragos como Bruno, solitários como Bruno, ansiando como ele por um amanhã que pode jamais chegar.

 

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Anteriores textos desta série:

 

A Mancha Humana - A América vista ao espelho

Os Maias - O século XIX aqui tão perto

Sinais de Fogo - Do amor e da guerra

A Escola do Paraíso - Esta Lisboa de outras eras

O Anjo Mudo - Sem tecto, entre ruínas

A Tia Julia e o Escrevedor - Ouvir para crer

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