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Delito de Opinião

Grandes romances (27)

Pedro Correia, 24.08.19

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ESTA LISBOA DE OUTRAS ERAS

A Escola do Paraíso, de José Rodrigues Miguéis

 

Não é fácil escrever sobre o imaginário infantil sem cair na tentação de recorrer a um fraseado condescendente e pueril. José Rodrigues Miguéis (1901-1980) supera com distinção o teste neste admirável romance em que regressa à sua mais remota infância, decorrida numa Lisboa em grande parte já só existente no nevoeiro das recordações.

Publicado em 1960 pela Editorial Estúdios Cor, a que se manteve fiel durante o longo exílio norte-americano, o autor de Páscoa Feliz devolve-nos nestas páginas à Lisboa em que nasceu e cresceu: foram anos cruciais da nossa vida colectiva, desenrolados na turbulenta década final da monarquia e na convulsa agitação do regime republicano nessa fase em que a palavra “revolução” se banalizara no quotidiano alfacinha.

 

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O pequenino José, o mais novo de três irmãos, assistia ao espectáculo do mundo circunscrito da humilde mansarda onde a família residia, na colina de São Vicente, com o Tejo em fundo. E nós assistimos com ele ao incomparável desfile de personagens que vão entrando e saindo de cena à irregular cadência de um tropel de recordações, em páginas de uma admirável limpidez descritiva, percorridas por diálogos saborosíssimos que o escritor manteve em pousio durante meio século antes de as partilhar connosco.

O enredo não necessitou de ser inventado: foi recriado a partir das minuciosas lembranças daquele país que permaneceu intacto na memória do escritor enquanto Miguéis ganhava a vida como colaborador de jornais e copy desk das Selecções do Reader’s Digest em Manhattan, onde viria a falecer em 1980, com 79 anos incompletos. É, de algum modo, o livro de um expatriado – neste caso de alguém marcado pelo duplo exílio do espaço e do tempo, consciente de que a Lisboa palpitante e popular das suas digressões nostálgicas já pouco se assemelhava à Lisboa enfastiada e burguesa da época em que publicou o livro.

A extensa discrepância temporal entre o experimentado e o fruto dessa experiência revivida em escrita traz um interesse acrescido a este singular romance que Rodrigues Miguéis, fiel ao seu cânone realista, chamou A Escola do Paraíso, em expressa homenagem ao modesto estabelecimento escolar onde aprendeu a juntar as primeiras letras, situado em Alfama, precisamente na Rua do Paraíso. «Por extraordinário que pareça, o Paraíso existe e está ao nosso alcance: ao cimo da calçada, quase ao encontro das três ruas, mas recolhido e ausente.» (p. 37 da 6.ª edição, Editorial Estampa, 1984).

 

aescoladoparaiso[1].jpgÉ um romance edificado a partir de fragmentos desse remoto quotidiano lisboeta – no fundo, um conjunto de crónicas que compõem um mosaico consistente como matéria ficcional e muito revelador enquanto testemunho histórico.

Tudo temperado pelo olhar infantil: arrisco até dizer que, neste sentido A Escola do Paraíso será o melhor romance português centrado na infância – com a sua linguagem muito própria, as suas pequenas alegrias, os seus temores, as suas inquietações, a sua natural ingenuidade, a sua peculiar mundividência construída a partir de experiências alheias e absorvida no incessante processo de aprendizagem dos labirintos da vida.

Esta construção romanesca torna-se ainda mais aliciante devido a um engenhoso artifício de estilo pontuado de pequenos saltos cronológicos e de alternância das formas verbais, fixando o relato numa espécie de presente intemporal que envolve o leitor num abraço cúmplice, tornando-o participante da narrativa. Como se fôssemos contemporâneos destes enredos, como se fôssemos íntimos destas personagens. Começando pelo pequeno Gabriel, falsa terceira pessoa, que por vezes deriva para a primeira do singular, em evidente identificação existencial com o narrador.

Miguéis, excepto na alteração dos nomes, não quer marcar distâncias com a matéria concreta que lhe serve de inspiração romanesca: cá estão o irmão Santiago, a irmã Águeda, a mãe Adélia, o pai-herói Agustín - porteiro de hotel natural da Galiza e desembarcado muito jovem em Lisboa, como tantos da sua região, para fugir à incorporação militar em Espanha e ao consequente envolvimento em conflitos bélicos em Marrocos, Cuba e Filipinas. Mais o esquivo avô Colmeal, que só uma vez rumou lá da terra, em Pombal, para visitar a filha e os netos na capital do reino, quando já dissipara a fortuna acumulada em tempos idos. E o avô Callante, natural de São Tiago de Borbén (Redondela, Pontevedra), que de quando em vez descia da Galiza a Lisboa, distribuindo pelos netos «aquele maravilhoso chocolate galego, negro e duro, em pranchas quadriculadas no papel gorduroso, que a mãe ralava e fervia com leite» (p. 93).

 

Vale a pena seguirmos o percurso desta família residente na velha Lisboa de outras eras, recriada pela talentosa pena de um prosador a que nem o longo desterro de quase meio século desviou da devoção ao idioma materno.

«Não se pode ter nascido ali, viver a ver chegar e partir navios todos os dias, com um rasto de lágrimas e o esvoaçar de adeuses no azul, nem ouvir noite e dia estas vozes, sem ficar impregnado de irremediável nostalgia. Tudo isto, o rio imenso, os cais, o mar, os horizontes, se integra nele e ficará para sempre dentro dele como um apelo de longe e uma saudade, anseio de partir de voltar» (p. 23). Miguéis escreve como se falasse de outro, mas é dele mesmo que fala. Do menino que na vida adulta, a partir de 1933, se tornou desterrado por opção profissional e política. À cidade natal foi regressando fisicamente, ancorando aqui por três períodos breves (1946-47, 1957-59, 1963-64) antes do retorno definitivo a Manhattan.

Mas do ponto de vista afectivo e sentimental nunca de cá saiu. Como este livro bem comprova: A Escola do Paraíso é uma declaração perene de amor a Lisboa.

 

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Tornamo-nos íntimos de um incomparável cortejo de personagens: o capador anunciado pelo som da gaita, que bastava para afugentar os gatos; as manas Parreirinhas, frequentando a missa diária sempre de mantilha negra; a tia Zulmira, entoando baladas tristes; o Manuel da Margarida, dono da mercearia, que oferece ao miúdo pirolitos e bolachas Maria; o Zé do Adro, tolhido dum braço; o vizinho Torres, homem de grande estatura para condizer com o apelido; as manas Perliquitetes, «solteiras, levianas, com chapéus arrendados e floridos»; o alfaiate Geadas; a corista Miquelina, que dá que falar na vizinhança; o general Belchior, «sempre atrás das costureirinhas»; o médico António José, «de barba em bico espetada, voz nasalada e quente», que viria a ser Presidente da República.

Enfim, deparamos com uma sucessão de quadros vivos e vibrantes, renascidos na pena arguta do romancista: os moços-de-fretes galegos cruzando as ruas «a carregar andores de trastes empilhados a uma altura assustadora» durante a «estação das mudanças», quando a capital amanhecia «coberta de escritos» nas janelas. Os primeiros automóveis que aceleravam nas ruas alfacinhas, envoltos em nuvens de fumarada e popularmente conhecidos por «mata-gente». Jantares domésticos em dias de festa com ementa assim descrita: «Puré de feijão encarnado com nabiças, lombo de porco assado no forno, arroz doce enfeitado a canela, saúdes com vinho fino.» 

Dando assim consistência à conclusão de David Mourão-Ferreira, atento leitor deste romancista. Na sua perspectiva, Miguéis é «o ficcionista que mais pessoalmente vem realizando, neste século, através da memória e da fantasia, uma íntima, sortílega e variada "reedificação" da própria cidade que lhe serviu de berço.»

 

O menino que se tornava rapaz a tudo assistia, gravando cada imagem, cada som, cada odor nos confins recônditos da memória. Sempre «de olhos abertos para o invisível», como se no mais fundo de si se adivinhasse fadado a plasmar em livro aquelas fugidias reminiscências da primeira infância, conferindo uma segunda vida a tantas figuras há muito desaparecidas da nossa paisagem urbana, hoje cada vez mais semelhante à de tantas outras capitais.

Gente morta e renascida, conferindo-nos a certeza sempre renovada nuns dos méritos da grande literatura: a de ser capaz de nos elevar a patamares de eternidade.

 

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Anteriores textos desta série:

 

O Fim da Aventura - Efémero amor eterno

O Anão - O Infra-homem

Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch - A lei do frio e da fome

A Mancha Humana - A América vista ao espelho

Os Maias - O século XIX aqui tão perto

Sinais de Fogo - Do amor e da guerra

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