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Delito de Opinião

Grandes romances (26)

Pedro Correia, 12.07.19

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DO AMOR E DA GUERRA

Sinais de Fogo, de Jorge de Sena

 

«Eu estava em férias. Toda a gente estava em férias. Mas a vida é que não estava em férias.» (p. 255)

 

Aos 16 anos, os dias parecem prolongar-se numa larga avenida a perder de vista. Concluído o ensino secundário, um jovem burguês de Lisboa ruma à Figueira da Foz, onde uns tios o hospedam numa vivenda apalaçada a curta distância da praia, para ali desfrutar preguiçosas semanas de sol e mar.

Aquele Verão irá marcá-lo para sempre. Estamos em Julho de 1936, a Figueira era a estância balnear da moda, procurada não apenas por portugueses de diversos pontos do País mas também por espanhóis. Todos são ali apanhados de surpresa pela eclosão da guerra civil – prelúdio de um conflito bélico de proporções mais vastas que não tardará a incendiar a Europa.

Naquele cenário idílico, «onde todos os fios de uma meada se cruzavam», o jovem perderá o que lhe resta da inocência. É o tempo dos ritos iniciáticos que o levam à descoberta do sexo, do amor, da paixão, da amizade, da política, da poesia. Não por acaso, chama-se Jorge e é ele quem desenrola o fio da narração, sempre na primeira pessoa: o autor faz questão de acentuar o carácter profundamente autobiográfico deste monumental romance – um dos marcos da ficção portuguesa do século XX – que funciona como testemunho, por vezes dilacerante, de um percurso pessoal e literário construído ao longo de diversas etapas de exílio geográfico e emocional. Sem escolas, sem cartilhas, sem clubes nem partidos.

 

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Jorge de Sena (1919-1978), muito recordado este ano a propósito do seu centenário, que se cumpre em Novembro, deixou-nos vasta obra distribuída por diversos géneros: poesia, conto, novela, teatro, crónica, ensaio, crítica, cartas, tradução. Mas apenas um romance: este Sinais de Fogo, que só chegaria aos leitores em edição post mortem, no ano seguinte ao do seu falecimento. Centenas de páginas (594, na edição lançada em 1989 pelo Círculo de Leitores) que nos transportam em simultâneo à intimidade do escritor, num período decisivo da sua formação, e a uma época marcante da nossa vida colectiva.

Foi um livro de laboriosa elaboração. Sena demorou cinco anos a escrevê-lo, nos intervalos da sua contínua produção de textos e das aulas de Literatura Portuguesa que ia leccionando em estabelecimentos universitários para ganhar a vida enquanto pai de nove filhos, intelectual desterrado por opção própria no Brasil (entre 1959 e 1965) e nos Estados Unidos (desde 1965 até à morte, prematura «como são todas as mortes», diz-nos em verso seu).

Abandonou praticamente o manuscrito a partir de 1969, por lhe exigir investigação suplementar acerca de uma época já distante. Face às circunstâncias da vida, tal investigação nunca chegou a ocorrer: o projecto ficaria incompleto. E rumou ao prelo mesmo assim: aquelas fugazes semanas do Verão de 1936 eternizaram-se à revelia do plano original, que prolongaria o enredo até à Primavera seguinte. Restaram estas cinco partes – a que funciona como introdução, as três referentes à Figueira e uma espécie de epílogo amputado, situado em Lisboa. Questiono se não valeria a pena, em reimpressões futuras, prescindir deste último bloco, reservando-o para uma edição crítica, de carácter académico.

 

Num precioso prefácio destinado à terceira edição, em 1984, Mécia de Sena desvenda o processo de elaboração deste romance, que Sena transportou na cabeça muito antes de o levar à prática, possuído de uma «febre de escrita», tendo embora lucidez bastante para considerá-lo «impublicável», como fez em carta a Luís Amaro datada de 1967: sabia que estas páginas torrenciais, dignas de perturbar a moral da época até pela linguagem nua e crua nelas contida, nunca veriam a luz do dia enquanto vigorasse a censura. Para ele funcionaram sobretudo como uma catarse, permitindo-lhe revisitar a sua angustiada e perplexa adolescência, decorrida na primeira década do salazarismo, em tempo de tiranias e de severas fracturas ideológicas um pouco por todo o continente.

Sinais de Fogo, revela-nos a viúva e gestora do valiosíssimo espólio literário do autor, seria o título inicial de um painel romanesco de grandes dimensões que pretendia retratar a atmosfera social do País entre 1936 e 1959 sob a designação genérica Monte Cativo – rua do Porto, cidade onde Sena concluiu o curso de Engenharia Civil e suposto cenário principal de um desses romances. Aqui o foco centra-se no conflito espanhol, com reflexos óbvios no plácido quotidiano português: «Este acontecimento é fulcral no romance e, tornando-o instrumental no despertar do protagonista para a realidade política e social, para o amor e até para o acto da criação poética, a acção não podia abranger mais do que esse preciso tempo de eclosão».

 

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Além deste enquadramento histórico, que bastaria para torná-lo aliciante, o livro tem um mérito complementar: faz emergir as alegrias, as angústias e os dramas da adolescência na literatura portuguesa, como nunca se vira antes e raras vezes se viu depois.

«Eu era uma criança. Os meus amigos eram crianças. Todos nós era como se tivéssemos afinal só dezasseis anos ainda. E não seria que quase todos os homens continuavam assim? Que nenhum crescia para fora de si mesmo? E não era isso que o mundo inteiro desejava que continuássemos a ser?» (p. 120 da edição citada).

Jovens em férias, rotinados em cíclicos reencontros estivais naqueles escassos quarteirões que se estendiam entre o casino e o areal figueirense, ficariam marcados por aquele Verão soalheiro e trágico em que Jorge descobre que «todos dependemos de todos, sobretudo para matar e morrer». (p. 307)

Tantos anos decorridos, ainda têm o condão de nos empolgar, divertir, indignar, inspirar e comover, tudo ao mesmo tempo: isto confirma a vibrante força criadora deste escritor que mesmo em prosa evidenciava todas as virtudes da sua arte poética.

 

Não restem dúvidas: entre outros méritos, este é um livro exemplarmente bem escrito. Ao nível das descrições, valorizadas por um estilo rigoroso e límpido: «A manhã estava cheia de sol e de uma aragem fria que fazia transparente o ar. Nas ruas desertas, passavam crianças raras, com as criadas atrás, a caminho da praia. Um peixeiro vinha vindo, no seu trote descalço, vestido de escuro, e carregando ao ombro, nas pontas de uma vara, peixe cujo peso a encurvava.» (p. 215) E acima de tudo nos diálogos, que captam de forma irrepreensível a entoação, a cadência e o vocabulário dos diferentes grupos etários e variados grupos sociais, protagonizados por figuras de carne e osso a que Sena deu dimensão literária, enquanto personagens, recorrendo a um engenhoso método (é Mécia quem o desvenda): mudou-lhes o nome próprio mantendo a letra inicial, que funcionava como «chave do reconhecimento de todos».

Irão acompanhar-nos para sempre: o Jorge, com os seus dilemas morais e as suas incessantes interrogações; a Mercedes, dividida entre o prazer e o dever; o Zé Ramos, malogrado irmão da Mercedes; o Carlos Macedo, já envolvido na militância comunista, forçosamente clandestina; o primo Ramiro, salazarista convicto; o Almeida, sedutor barato; o Luís, irmão mais novo do Carlos, de sexualidade ambígua; o Rufininho, «homem que gostava de homens»; o Rodrigues, que os acasos do destino levaram a tornar-se adulto muito antes do tempo. Sem esquecer os mais velhos, começando por esse fabuloso Tio Justino, um inválido da Grande Guerra e amante da roleta que tratava todas as criadas por Maria ou Micaela. Mas também a tia, elegante e loura, que fascinava os rapazes com a sua inacessível beleza. E a mãe dela, velha devassa que adorava devorar meninos caídos no seu regaço em Coimbra.

A propósito, Sinais de Fogo contém várias cenas de sexo explícito, muito bem sugeridas e descritas, desmentindo a enraizada convicção de que a literatura portuguesa fracassa fatalmente entre lençóis.

 

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Figueira da Foz nos anos 30, cenário deste romance

 

Livro político? Sim. Uma dolorosa história de amor, paixão e ciúme? Também. Impressivo retrato da sociedade daquela época? Sem a menor dúvida, funcionando como espelho desse mosaico social a própria distribuição geográfica dos banhistas: as pessoas com mais posses alugavam barracas e as restantes agrupavam-se na zona dos toldos, cabendo Buarcos, no extremo norte, aos pescadores e suas famílias. Havia ainda os camponeses, povoando o areal aos domingos com seus cabazes e suas lancheiras, o que afugentava a burguesia mais sujeita a preconceitos. Sem esquecer uns escassos sobreviventes das classes aristocráticas, que jamais punham os pés na praia, evitando qualquer exposição ao sol.

Trata-se, no fundo, de uma obra inclassificável, aliás à imagem do autor. Jorge de Sena definiu-se muito bem neste excerto de uma entrevista concedida em 1972, ao Rádio Clube de Moçambique, e que permaneceu inédita por determinação da censura oficial: «Nunca pertenci a nenhum partido político, não pertenço e creio que nunca pertencerei, da mesma forma que nunca pertenci a associações de futebol, a clubes de classe, a outras coisas, que eu sempre fui a pessoa menos associativa do mundo, porque acho que a associação, nesse sentido, é o oposto da coisa que eu mais estimo, que é a convivência humana.»

 

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Anteriores textos desta série:

 

O Coração das Trevas - Quanto pior, melhor

O Fim da Aventura - Efémero amor eterno

O Anão - O Infra-homem

Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch - A lei do frio e da fome

A Mancha Humana - A América vista ao espelho

Os Maias - O século XIX aqui tão perto

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