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Delito de Opinião

Grandes romances (24)

Pedro Correia, 04.05.16

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A AMÉRICA VISTA AO ESPELHO

A Mancha Humana, de Philip Roth

 

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No momento em que os Estados Unidos se preparam para a despedida do primeiro Presidente com raízes africanas da sua história, vale a pena determo-nos um ouco sobre um dos melhores romances ali editados nas últimas duas décadas. Um romance que nos fornece o pano de fundo desta América aparentemente convertida à harmonia racial. A Mancha Humana (The Human Stain, 2000), escrito por Philip Roth, um dos grandes ficcionistas da actualidade, fala-nos da mais insidiosa forma de racismo: a que faz um indivíduo sentir vergonha do seu próprio tom de pele.
 
A novidade aqui é que esse indivíduo é uma pessoa instruída, letrada, pertencente à elite universitária norte-americana. Coleman Silk, especialista em estudos clássicos, uma autoridade em Homero e outros autores da Grécia antiga, um transmissor de conhecimentos – alguém que poderíamos apontar como um pilar da sociedade.
“Ninguém sabe a verdade de uma pessoa, e com muita frequência a própria pessoa menos do que as outras.” Palavras de Roth, visando Silk, a figura central deste romance que disseca como nenhum outro os labirintos da América contemporânea.
O professor universitário, figura respeitável e até reverenciada, é afinal alguém que vive mergulhado há décadas num ciclo interminável de mentiras que o levou a quebrar os laços com a família de sangue em benefício da ascensão social. Branco filho de mulatos negros por capricho da genética, percebe durante a juventude, vivida na próspera América de Truman e Eisenhower, que jamais deixará de ser um cidadão de segunda se não renegar as raízes negras.
É já no fim da vida que Coleman se confronta com esta marca indelével do seu passado, ignorada pela mulher e pelos quatro filhos – fortuitamente de pele clara, como ele. “Este homem idealizado de acordo com os mais convincentes e credíveis traços emocionais, este homem benignamente astucioso, suavemente encantador e aparentemente viril em todos os aspectos, tem, no entanto, um segredo imenso.” Assim nos surge este anti-herói de Roth na excelente tradução portuguesa de Fernanda Pinto Rodrigues (Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2004).
 
Toda a ilusória solidez deste edifício se desmorona quando o professor, por um inesperado golpe do destino, é confrontado com uma absurda acusação de discriminação racial por parte de uma aluna negra, logo protegida pelo establishment universitário. Este episódio, que o leva a demitir-se da faculdade, funciona como um choque vital para o velho professor com genes negros que toda a vida se comportou como um ser despigmentado. “Pensas como um prisioneiro. É verdade. És branco como a neve e pensas como um escravo.”
Esta América ainda cheia de fantasmas pronunciou-se pela voto em 2008 e 2012, elegendo e reelegendo o Presidente de que em breve se despedirá. A América de Barack Obama, que é também a América de Coleman Silk – a América onde muitos alimentam a suave ilusão de que o racismo se apaga por efeito automático de um boletim eleitoral. O próprio Roth parece vislumbrar uma luz de esperança: “As pessoas envelhecem. As nações envelhecem. Os problemas envelhecem. Às vezes envelhecem tanto que deixam de existir.”
E no entanto deste romance memorável desprende-se uma visão desencantada da condição humana que nenhum apelo festivo à mudança é capaz de redimir: “Nós deixamos uma mancha, deixamos um rasto, deixamos a nossa marca. Impureza, crueldade, mau trato, erro, excremento, sémen. Não há outra maneira de estar aqui.”
 
Não nos deixemos iludir excessivamente pelas manchetes dos jornais, que se limitam a reflectir a espuma dos dias. Sob a América de Obama esconde-se a América de Silk. Imóvel, dúplice, secreta, manchada pelo preconceito. Essa América que nos dois anteriores escrutínios presidenciais se viu ao espelho através das urnas.
Gostará desse retrato de si própria? 

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Últimos textos desta série:

 

A Oeste Nada de Novo - Geração perdida 

A Marcha de Radetzsky - O passado é um país distante

O Coração das Trevas - Quanto pior, melhor

O Fim da Aventura - Efémero amor eterno

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