Grandes romances (23)
A LEI DO FRIO E DA FOME
Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch, de Alekxandr Soljenítsine
«Um homem que se sinta aquecido não pode compreender outro que está com frio.» (p. 122)
Alguns podem achar insólito, mas tenho a crescente tendência para adequar a leitura de grandes textos literários a estações do ano. Há livros que só ganham em ser lidos no tempo quente, outros reforçam o seu impacto junto do leitor se forem lidos quando está frio.
Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch é um livro apropriado ao Inverno. Porque um frio polar o atravessa de ponta a ponta. É um frio extremo, cortante, que tolhe, corrói e mata. Numa atmosfera gelada, de penúria extrema e tão admiravelmente descrita que desde as páginas iniciais também nós, leitores, sentimo-nos vergar ao peso do frio e da fome naquele campo de prisioneiros do Cazaquistão siberiano perdido no mapa, esquecido do mundo, oculto da luz, onde impera a lei do mais forte e a morte prematura é o destino mais comum.
O frio vigora em dois planos simultâneos: não é apenas o frio concreto, ditado pelo fatalismo meteorológico, mas também o frio simbólico, pois nestas páginas viajamos aos anos de chumbo do estalinismo na imensa Rússia devastada pelo terror vermelho. Um terror insidioso, que contamina corpos e consciências, apossando-se do país como um vírus letal.
Como o título indica sem disfarces, toda a acção decorre num período de 24 horas. Unidade temporal, portanto. E unidade espacial também: Ivan Deníssovitch Tchukov e os restantes prisioneiros estão confinados aos pavilhões onde dormem e tomam as parcas refeições, além de um limitado reduto exterior em que executam trabalhos braçais de todo o tipo.
Quem ali entra perde o direito à identidade: passa a ser conhecido apenas por um número. Luta diariamente por uma malga de água quente ou uma côdea suplementar de pão. E é forçado a trabalhar desde antes da alvorada até muito depois do pôr-do-sol. Como se a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas tivesse adoptado a tenebrosa divisa inscrita à entrada de Auschwitz pelo totalitarismo nazi: Arbeit macht frei (o trabalho liberta).
Ivan, o recluso S854, é um destes prisioneiros decretados "inimigos do Estado". Cumpre uma pena de dez anos por um crime que nunca cometeu: combatente na II Guerra Mundial, foi feito prisioneiro pelos alemães mas conseguiu evadir-se; ao regressar às fileiras, acabou detido, acusado de espionagem e, portanto, de "alta traição à pátria".
Tudo isto aconteceu em 1943. No livro, estamos já em 1951, Ivan deixara há muito de contar os dias que lhe faltavam para cumprir a pena. Porque o tempo dos prisioneiros -- que não eram autorizados a usar relógio nem qualquer outro bem pessoal -- estava inteiramente à mercê dos ditames do Estado, arbitrário também nisto: «Podem virar a lei de pernas para o ar. Depois de cumprir os dez anos, podem muito bem dizer: "Ora toma lá mais outros dez." Ou podem-nos exilar.» (p. 70)
O Código Penal, que proibia despir presos a temperaturas abaixo dos vinte graus negativos, era ali letra morta. Um protesto mais sonoro contra a prepotência dos guardas dava acesso automático a dez dias numa cela solitária, sem aquecimento, da qual poucos voltavam com vida. Um passo à esquerda ou à direita nas marchas forçadas era equiparado a tentativa de evasão, permitindo à escolta ordem de atirar sem aviso.
Este curto romance -- demolidora denúncia da ditadura soviética -- está escrito num estilo deliberadamente seco, sintético, sincopado, com raros adjectivos e sem adornos de qualquer espécie. Quase como num relato jornalístico que transporta o leitor ao interior de um dos pontos nevrálgicos do vasto arquipélago de Gulag, expressão cunhada pelo próprio Soljenitsine que entraria mais tarde no léxico universal para designar os campos de extermínio concebidos pelo comunismo.
Vemos a realidade descrita pelos olhos do prisioneiro S857, mas o texto evita a primeira pessoa do singular, que seria deslocada neste mundo de clausura totalmente despersonalizado.
«Os pensamentos de um prisioneiro -- também eles não são livres. Voltam insistentemente às mesmas coisas. Uma ideia torna-se fixa. Descobririram aquele bocado de pão no colchão? Teria sorte em conseguir baixa por doença nessa noite?» (p. 40) [Uso a tradução da primeira edição portuguesa, datada de 1963 para a Guimarães Editores, e assinada por Fernando de Melo Moser e Paulo Madeira Rodrigues a partir da versão inglesa.]
Ivan Deníssovitch, um operário de 40 anos, fora mobilizado da sua aldeia para o exército a 23 de Junho de 1941, logo após a invasão nazi da Rússia. «Durante os anos passados em prisões e campos de concentração perdera o hábito de fazer planos para o dia seguinte, para daí a um ano ou para manter a família.» (p. 44) Vivia no limiar da sobrevivência, num combate permanente, sem desfecho à vista, contra o fio e a fome.
«Deve comer-se com todo o pensamento na comida -- como o fazia agora, mordiscando o pão aos bocadinhos, fazendo uma pasta da côdea com a língua e chupando com as bochechas. E como sabia bem, esse pão negro e húmido! (...) Comeu o pão até aos dedos, guardando só um bocadinho de côdea, da parte superior do pão em forma de meia lua -- porque para rapar bem uma malga de papas não há melhor colher do que a côdea do pão.» (pp. 51-53)
O combate não se trava só pela sobrevivência física, mas também pela integridade moral que Ivan consegue preservar a todo o custo sem odiar os carcereiros nem perder a fé, ainda que remota, num futuro menos sombrio. É uma vitória íntima contra um sistema concentracionário, que visa aniquilar qualquer resquício de vontade autónoma e suprimir a dignidade interior do ser humano quando tudo o mais lhe é negado.
Aqui não conhecemos só Ivan. Ficamos a conhecer também Vdovuchkín, ex-estudante universitário de Literatura, preso quando frequentava o segundo ano. E Buinóvski, capitão de marinha que manteve contactos com os aliados ocidentais de Moscovo durante a guerra, não tardando a cair em desgraça. E Fetiukov, ex-encarregado fabril, que «fora um tipo muito importante num serviço qualquer, com automóvel privativo». E Tsezar, antigo realizador de cinema. E Aliocha, cristão evangélico, que lembrava aos outros: «De todas as coisas terrenas e mortais que o Nosso Senhor nos ordenou que orássemos, foi só o pão de cada dia.» (p. 177).
Todos destituídos de cidadania. Todos até probidos de usar a omnipresente palavra "camarada".
Num dia sob 27 graus negativos, igual a tantos outros. Porque no Gulag todos os dias são pavorosamente iguais. «Nunca se deve dar nas vistas. O importante é nunca se ser notado por um guarda do campo, só em grupo. Quem podia adivinhar que o tipo não andava à procura de alguém para sobrecarregar com serviços, ou não caía em cima de um homem por rancor? Não tinham andado pelas casernas a ler-lhes o novo regulamento? Deviam tirar o gorro a um guarda cinco passos antes de passar por ele e só o colocar de novo dois passos depois.» (p. 18).
Soljenítsine (1918-2008) conhecia bem o tema deste seu primeiro livro. Como Ivan, também ele combateu na II Guerra Mundial. E também ele foi preso -- apenas porque se referiu jocosamente a Estaline, chamando-lhe Zé dos Bigodes, numa correspondência privada interceptada pelos serviços da censura militar.
Também ele conheceu o Gulag por dentro antes de o revelar ao mundo, desfazendo de vez o mito do comunismo supostamente libertador.
Após oito anos de detenção e três forçado ao exílio interno, viu enfim a sua pena revista no breve período de degelo ideológico iniciado em 1956 pelo sucessor de Estaline, Nikita Krutchov. Ultrapassados trâmites políticos e burocráticos de toda a ordem, Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch saiu finalmente, em Novembro de 1962, nas páginas da revista Novy Mir [Novo Mundo], editada por Aleksandr Tvardoski, poeta e membro do comité central do Partido Comunista da União Soviética.
Editada em livro no ano seguinte, foi a primeira obra a romper as malhas da censura, merecendo o beneplácito do próprio Krutchov na sua estratégia de desmantelamento do totalitarismo estalinista, conforme declarou em 1961, no XXII Congresso do PCUS: «É nosso dever fazermos uma análise dolorosa e completa destes factos ligados ao abuso do poder. (...) E devemos fazê-lo para que tais coisas nunca tornem a acontecer.»
Soljenítsine, ex-prisioneiro político, conheceu então o seu único sucesso comercial no circuito editorial de Moscovo antes do fim do comunismo: num só dia, venderam-se 94 mil exemplares deste romance.
Mas o degelo durou pouco. Krutchov viria a ser derrubado em 1964 por um golpe palaciano que lançou outro manto de chumbo sobre a Rússia. Novamente detido, novamente conduzido ao exílio interno, expulso da União dos Escritores Soviéticos, enfim deportado do país em 1974 (só então recebeu o Nobel da Literatura que lhe fora atribuído quatro anos antes), foi o escritor mais perseguido e proibido do regime: as suas obras posteriores -- incluindo O Pavilhão dos Cancerosos e O Arquipélago de Gulag -- teriam larga difusão, mas apenas através dos circuitos clandestinos.
Tal como Ivan, também o escritor soube resistir. Com a convicção de que é preciso superar um dia de cada vez.
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