Grandes romances (22)
O INFRA-HOMEM
O Anão, de Pär Lagerkvist
Há romances que nos seduzem pelo tema, que desce como um bisturi às entranhas da natureza humana. Outros que nos capturam pela depuração do estilo. Outros ainda que nos surpreendem com uma personagem que jamais se dissolverá na nossa memória.
O Anão, de Pär Lagerkvist (1891-1974), torna-se inesquecível por tudo isto. Livro de um autor sueco, ambientado numa corte renascentista em Itália, encerra uma mensagem de projecção universal: constitui uma poderosa alegoria do mal, concebida num tempo de falência das utopias, quando o mundo vivia mergulhado no pesadelo da guerra.
Porque Dvärgen (nome original do romance em sueco) é inseparável do ano em que foi impresso pela primeira vez. Combatia-se com ferocidade em várias frentes de guerra no planeta, incendiado pela demência nazi. Estávamos em 1944 e, sabendo isto, é impossível não associarmos este anão -- figura central e quase exclusiva do romance -- a Adolf Hitler. Com os seus rancores atávicos, a sua feroz misantropia, o seu instinto predador, os seus impulsos homicidas.
Todas as páginas são preenchidas pela presença obsessiva deste ser menor, com apenas 66cm de altura e uma estatura moral equivalente à sua compleição física. Encontramos nela reminiscências do discurso hitleriano que por sua vez nos remetem para a retórica de Nietzsche, que Lagerkvist argutamente inverte: este anão, chamado Piccolino (pequenino, em italiano), é um infra-homem como o falso super-homem de matriz ariana, gigante às avessas, grande apenas na sua impiedosa eloquência que devolve à voz humana o grunhido da besta.
«Um povo sem chefe é apenas um miserável rebanho de carneiros» (p. 126) e «nada existe mais ignóbil do que um ser humano» (p. 113), rumina o insólito narrador deste original romance sem capítulos, escrito em forma de diário de indefinidos contornos temporais e imprecisas coordenadas espaciais. Estamos em Florença ou Milão, algures no Renascimento, muito provavelmente nas décadas iniciais do século XVI. As personagens laterais desvendam-se só como silhuetas descritas pelo olhar deformado de Piccolino, émulo de Maquiavel desprovido de qualquer grandeza. Abandonado à nascença pela mãe, acabou acolhido na corte, onde requintou o instinto de sobrevivência expresso nesta frase emblemática: «Um príncipe tem sempre necessidade do seu anão.» (p. 142)
Surge-nos o príncipe, moldado provavelmente em César Bórgia: «De boa vontade diria que é um grande homem, se pudesse ser grande para o seu anão: sigo-o constantemente como uma sombra.» (p. 7). E a princesa Teodora, pretexto para o narrador exibir uma reprimida e dissimulada misoginia: «Odeio-a, desejaria vê-la morta, vê-la a arder no fogo do Inferno, com as pernas abertas e as chamas lambendo-lhe o ventre repugnante. (...) Odeio todos os seus amantes. Tive sempre o desejo de me lançar sobre eles, com o punhal na mão, e de ver o seu sangue correr.» (pp. 7/8) E Leonardo da Vinci, aqui chamado Bernardo, fugaz relâmpago civilizacional nestas páginas que podem ler-se como um tratado sobre a origem do mal.
Lagerkvist, um agnóstico nostálgico da fé perdida, orgulhava-se de ter crescido num lar onde havia apenas um livro: a Bíblia. Como sucede com muitos escritores influenciados pelo dogma cristão, toda a sua obra funciona como uma peregrinação dos filhos de Caim às raízes do pecado original.
A originalidade deste curto romance -- o primeiro livro que lhe deu projecção universal e, tal como Barrabás (1950), contribuiu para que fosse distinguido em 1951 com o Nobel da Literatura -- deve-se em grande parte à invocação da deformação física como espelho da degenerescência moral, sem ocultar uma visão profundamente pessimista sobre o destino da espécie humana.
Desengane-se quem aqui vier em busca de vestígios do "bom selvagem", de Rousseau: Piccolino odeia sorrisos, detesta crianças, abomina qualquer forma de compaixão e sente uma visceral repulsa por qualquer indício de amor: «Nunca fiz a experiência daquilo a que chamam amor e não tenho qualquer empenho em experimentá-la.» (p. 75) Um dia a princesa "ofereceu-lhe" uma anã: deixou-o totalmente indiferente.
Parábola do totalitarismo, que devastou o mundo em que o autor viveu, O Anão é uma obra-prima intemporal. Porque disseca de forma exemplar os mecanismos do poder absoluto. Porque desvenda com mestria a face oculta da natureza humana. Porque é um assombroso ensaio sobre o servilismo e a solidão. E ainda por ser escrita com espantosa contenção verbal -- própria do poeta que Lagerkvist nunca deixou de ser, além de romancista, dramaturgo e ensaísta.
Esta característica torna ainda mais impressionante a narrativa de Piccolino, que se gaba logo no parágrafo inicial de ter assassinado um semelhante para se tornar «o único anão da corte», professa uma crença inabalável num Deus vingativo e sente um prazer quase orgástico ao ouvir troar os cavaleiros do Apocalipse que anunciam a peste, a guerra, a fome e a morte.
Lançado em Portugal em 1955, pela já desaparecida editora Estúdios Cor, este romance regressou no ano passado às nossas livrarias, com a marca de qualidade da Antígona, recuperando a excelente tradução de João Pedro de Andrade. Foi um dos acontecimentos editoriais de 2013 em Portugal, permitindo reencontrar um título imprescindível da literatura mundial há muito esgotado por cá. Um livro que devia ser lido por todos os aprendizes da política, actividade povoada de anões que oscilam do narcisismo mais exacerbado ao servilismo mais rasteiro.
Duma fresta do castelo onde vive, Piccolino espreita certa noite o cerco dos exércitos sitiantes com indisfarçável fascínio:
«Quase poderia descrever os rostos dos mercenários quando, sentados em volta dessas fogueiras, contam uns aos outros os sucessos do dia. Lançam algumas raízes de oliveira no meio dos ramos que ardem e, ao clarão oscilante das chamas, os seus traços revelam-se duros e enérgicos. São homens que talham por sua mão o próprio destino e não vivem no eterno temor do que lhes trará o dia de amanhã. Acendem as suas fogueiras em qualquer sítio e preocupam-se pouco com o povo que lhes proporciona aquilo de que vivem. Não se interrogam sobre qual o príncipe que servem -- no fundo não servem ninguém senão a si mesmos. Quando estão cansados, deitam-se de costas ao comprido, nas trevas, e dormem até à carnificina do dia seguinte. São homens sem terra, mas toda a terra lhes pertence.» (p. 129)
Mercenários de ontem e de hoje. Anões morais de sempre. Prontos a devastar o mundo como se não houvesse amanhã.
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