Grandes romances (20)
QUANTO PIOR, MELHOR
O Coração das Trevas , de Joseph Conrad
«O romance é muito provavelmente o esforço mais bem sucedido do homem para descrever a experiência de seres humanos individuais a moverem-se através do espaço e do tempo.»
David Lodge, A Consciência e o Romance
Ia começar um novo século, que todos anteviam luminoso. Mas um escritor oriundo do norte da Europa, com raízes aristocráticas e espírito aventureiro, preferiu apontar para as trevas em vez da luz. Simbolizando numa viagem angular pelo curso de um grande rio africano a doença sem remissão da civilização ocidental, pervertida pelos demónios da intolerância, do fanatismo e da cupidez.
O rio era o Congo, o segundo maior do continente africano -- a que os portugueses sempre chamaram Zaire. O lugar era o chamado Estado Livre do Congo (1885-1908), um protectorado da coroa belga, território de conquista do rei Leopoldo II, arrancado às profundezas da selva. O ano era 1890: Joseph Conrad, na altura desempregado, aceitou comandar uma embarcação fluvial ao serviço da Sociedade Anónima Belga para o Comércio no Alto Congo, a companhia que em regime de monopólio explorava as riquezas naturais da região, com destaque para o valioso tráfico de marfim.
O que por lá viu bastou para o fazer voltar a Londres muito mais cedo do que previa, sem bilhete de regresso a África. Oito anos depois transformou essa experiência num curto romance, concluído a 9 de Fevereiro de 1899, e deu-lhe um título certeiro: O Coração das Trevas. Inicialmente divulgado em três fascículos na revista londrina Blackwood's Magazine, ainda em 1899, seria publicado em livro três anos mais tarde, como obra secundária, sob o título Youth: a Narrative; And Two Other Stories (a terceira era The End of the Tether).
Autor e editor pareciam ter pouca fé numa novela que a editora Penguin Books viria a incluir entre os grandes textos literários do século XX e o Guardian não hesitou em mencionar entre as cem obras-primas da literatura em língua inglesa. Orson Welles adaptou-a em 1938 a uma das memoráveis peças radiofónicas difundidas pela sua companhia, Mercury Theatre. Francis Ford Coppola colheu aqui a inspiração para realizar Apocalypse Now, um dos mais fascinantes filmes de todos os tempos.
O Coração das Trevas é a memória dessa viagem de pesadelo entre a capital congolesa, então chamada Léopoldville, e Stanleyville (actual Kisangani), antes da construção da linha férrea, quando o rio servia de única via de comunicação. Conrad viu ali a face do mal nas suas múltiplas facetas: europeus contaminados pela atmosfera malsã dos pântanos tropicais, o chicote colonial vergastando indígenas, doenças epidémicas semeando a morte, uma atmosfera de loucura colectiva apossando-se de corpos e almas.
Num primeiro rascunho, o escritor baptizado na Polónia natal como Józef Teodor Nalecz Korzeniowski e naturalizado britânico aos 27 anos, em 1884, manteve os nomes dos locais. Mas viria a ocultá-los na versão definitiva da novela, sem mencionar sequer o Congo. O texto libertou-se assim do contexto histórico em que foi escrito, adquirindo o valor de uma alegoria transponível para qualquer época e qualquer lugar.
Romancista de transição entre a literatura oitocentista (que em regra atribuía a narração a um observador omnisciente) e a estética modernista (que privilegiava um olhar subjectivo, e necessariamente incompleto, a partir das características psicológicas das personagens), Conrad introduz aqui duas inovações que ajudam a explicar o magnetismo desta novela tão singular e enigmática: por um lado, a história vai-se desenrolando em fragmentos de uma narrativa dentro de outra narrativa, tornando-se cada vez mais densa e fantasmática; por outro lado, o protagonista prima pela ausência durante quase toda a obra e só nos é desvendado através do testemunho de terceiros até às últimas páginas, quando finalmente escutamos a sua voz.
Esse protagonista é Kurtz, um agente comercial de cultura acima da média que rumou ao continente africano na expectativa de propagar a mensagem civilizadora como «emissário da piedade, da ciência e do progresso» mas viu todo o idealismo dissolvido na atmosfera primitiva da selva, esse «grande estômago que digere os europeus, arrancando-lhes o fino verniz de civilização que os separa do animal», como observou Rosa Montero num ensaio sobre esta obra, intitulado "Entre los Terrores y las Maravillas" (El Amor de Mi Vida, Alfaguara, 2011).
Não podendo vencer as tribos de canibais e coleccionadores de cabeças humanas, Kurtz juntou-se a elas, dando largas ao seu ego exacerbado ao ver-se venerado como um deus, cortando amarras com o meio de origem. Somou àquela violência primitiva a sua recém-adquirida cobiça pelo comércio do marfim, à imagem e semelhança do ganancioso monarca belga. Que, à sua maneira, também matava, mutilava, espoliava.
E quanto pior, melhor: passou a conduzir pequenas multidões a patamares extremos de violência selvática, sob o grito de guerra «Exterminai todas as bestas!» Olho por olho, dente por dente: opressor e oprimido tornavam-se indistinguíveis na sua fúria irracional.
É o panorama que Charlie Marlow -- alter ego de Conrad, personagem recorrente em vários dos seus romances -- testemunha naquela insólita digressão rio acima, rumo ao desconhecido, cumprindo um rito iniciático que o marcará para sempre. Sente -- e nós sentimos com ele -- como é frágil, precária e a todo o momento reversível a fronteira que distingue a civilização da barbárie, a luminosidade do negrume, a sanidade da loucura. «Subir o rio era como viajar para trás, até aos mais recuados princípios do mundo, quando a vegetação transbordava da terra e as árvores imperavam. Todo aquele deserto, um grande silêncio, a floresta impenetrável. O ar quente e espesso, muito pesado e mole. Uma luz solar sem alegria.» (p. 56 da edição portuguesa, datada de 1983, com excelente tradução de Aníbal Fernandes e chancela da Editorial Estampa.)
Ao leme do barco, como o timoneiro de que nos falou Pessoa, Marlow é mais do que ele: carrega em cima dos ombros o "fardo do homem branco" no continente negro. Atordoado com a repulsa e o fascínio que sente em simultâneo por Kurtz, outrora músico e jornalista, filho de mãe meio inglesa e pai meio francês. «Toda a Europa contribuíra para fazer aquele Kurtz», que deixara noiva no Velho Continente. Noiva-viúva que Marlow visitará, no crepúsculo da novela: vendo-a ainda iludida sobre a verdadeira personalidade do inominável deus dos canibais, cala-se pudicamente sobre o destino daquele homem que simbolizava como poucos a cobiça desmesurada de um certo mercantilismo europeu em África.
Só por fanatismo ideológico ou miopia aguda alguém poderá colar o rótulo de racista ao autor d' O Coração das Trevas. Houve quem o fizesse, sem fundamento nem sucesso.
Num dos seus ensaios, Virginia Woolf traçou uma observação certeira sobre o polaco naturalizado inglês: «Os seus livros estão cheios de momentos de visão que iluminam uma personagem como um relâmpago.» Talvez em nenhum outro como este, feito de expressivas dicotomias: o Tamisa e o Congo, a luz e as trevas, o bem e o mal, a vida e a morte.
Marlow regressa para contar o que observou -- relato que por sua vez nos será transmitido por um narrador anónimo. Tornando tudo ainda mais ambíguo, hipnótico, impenetrável.
«A tarefa que me propus e me esforço por alcançar é, pelo poder da palavra escrita, fazê-los ouvir, fazê-los sentir -- é, antes de mais, fazê-los ver. Isso -- e nada mais, e é tudo.» Palavras do autor num prefácio a outro livro e que bem podem servir de epígrafe à sua arte literária.
Sem surpresa, esta obra percorrida pela angústia metafísica do homem num mundo que proclama a ausência de Deus como referência suprema de virtude e compaixão influenciou vários livros dados à estampa no século XX -- um dos mais sinistros e sangrentos que a humanidade já conheceu: Terra Devastada, de T. S. Eliot, O Nó do Problema, de Graham Greene, O Deus das Moscas, de William Golding, e A Curva do Rio, de V. S. Naipaul, por exemplo.
Quem a lê, permanece anos a fio a bordo daquele barco, escutando as palavras derradeiras de Kurtz, mais tarde repercutidas como um arrepio na voz de Marlon Brando, em Apocalypse Now: «O horror! O horror!»
Quantos milhões de vozes, ao longo daquele século, não soltaram o mesmo grito em viagens sem retorno aos abismos da condição humana?
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