Grandes romances (19)
O PASSADO É UM PAÍS DISTANTE
A Marcha de Radetzky, de Joseph Roth
«Nasci em 1881 num grande e poderoso império, na monarquia dos Habsburgos, mas não a procurem no mapa: foi erradicada sem deixar rasto. (...) Entre o nosso hoje, o nosso ontem e o anteontem, todas as pontes foram cortadas.»
Stefan Zweig, O Mundo de Ontem
Faz agora cem anos, a Europa entrava numa das maiores convulsões da sua história. Ruía um mundo, outro havia de emergir das cinzas provocadas pela guerra, com o seu estendal de ideologias em confronto, radical reconfiguração de fronteiras e explosões de nacionalismos identitários.
Uma das vítimas dessa Grande Guerra que tornou irreconhecível a face milenar do Velho Continente foi o Império Austro-Húngaro, pedra angular do majestoso edifício oitocentista prestes a entrar em colapso. A coroa imperial de Francisco José estendia-se do Palácio de Schönbrunn, na Viena da dinastia Habsburgo, sobre um vasto mosaico de súbditos que integrava húngaros, alemães, eslovenos, croatas, boémios, italianos, polacos, ucranianos e rutenos russos.
Era um império demasiado vasto para permanecer incólume aos ventos de mudança que sopraram com a chegada do século XX. A sua derrocada marcou a despedida de uma época de ouro em que Viena era capital internacional das artes, das letras e das ciências. Ali se concentravam filósofos, escritores, pintores, músicos e cientistas como Sigmund Freud, Gustav Mahler, Ludwig Wittgenstein, Egon Shiele, Arnold Schönberg, Georg Lukacs, Hermann Broch, Arthur Schnitzler e Gustav Klimt.
Estas décadas de esplendor e decadência do Império Austro-Húngaro tiveram dois cronistas de excepção: Stefan Zweig, que nos legou em testamento O Mundo de Ontem, o mais fascinante livro de memórias sobre este período, e Joseph Roth, que celebrou as luzes e sombras do reinado de Francisco José num romance inesquecível: A Marcha de Radetzky.
Significativamente, é um romance que começa e termina sob o signo da derrota. Da batalha de Solferino (1859), em que as tropas sardo-piemontesas derrotaram o exército austríaco na segunda guerra pela independência italiana, à morte do imperador (1916), prenunciando o desfecho da I Guerra Mundial.
A acção do livro decorre entre estes dois marcos, percorrendo quase todo o reinado de Francisco José num suave declínio rumo ao desfecho inexorável. Como se, no fundo, os indivíduos nada pudessem contra a irreprimível pressão do devir histórico -- dando corpo a uma tese que teve em Tolstoi um dos principais cultores.
Guiados pelo talento narrativo de Roth, acompanhamos este percurso crucial da história do centro da Europa através de uma família de leais servidores da coroa, oriunda dos confins do império. Por mero acaso, o tenente Trotta salva a vida a Francisco José em Solferino. Ascende a capitão, é nomeado barão pelo monarca reconhecido e passa a chamar-se Joseph von Trotta von Sipolje, em alusão à aldeia eslovena onde nascera.
Nunca mais os destinos de ambos, o imperador e os Trotta, ficarão dissociados.
O avô do barão fora um pequeno agricultor eslavo. O pai, sargento da Guarda Nacional junto à fronteira sul do reino, perdera um olho ao defrontar contrabandistas na Bósnia, o que lhe valera a aposentação como inválido militar. Joseph Trotta, barão de Sipolje, desligava-se enfim da «longa cadeia dos seus antepassados» agrilhoados à terra: instruiu o filho Franz no alemão, língua veicular do império, e viu-se imortalizado como Herói de Solferino nos manuais escolares, que romanceavam a proeza com pormenores inventados. «O destino transformou em austríacos a nossa família de lavradores de fronteira. Assim queremos continuar a ser», escreverá por sua vez Franz ao filho, Carl Joseph. Palavras com a força de um lema. Ou de uma fatalidade.
Este é um livro com banda sonora: a célebre Marcha de Radetzky foi composta em 1848 por Johann Strauss (pai) para celebrar o fausto do Império Austro-Húngaro, simbolizando-o em Joseph Radetzsky (1766-1858), nobre e militar austríaco que se destacou em tempo de guerra e também na paz, como participante no Congresso de Viena (1814-15).
É com indisfarçável nostalgia que Joseph Roth a invoca, ao ponto de lhe atribuir o título do romance. Não custa perceber porquê: judeu de expressão alemã, jornalista conceituado, observador atento da sociedade do seu tempo, Roth escreveu A Marcha de Radetzky no início da década de 30, com a Europa novamente em turbulência. Em 1932, quando o livro é publicado em Viena, já os tambores nazis ameaçavam agrilhoar a Alemanha e, a partir dela, todo o continente. A evocação da época imperial tornara-se um doce anacronismo.
O fascínio de Radestzkymarsch -- incluída no cânone de literatura alemã -- deriva precisamente da pulsão nostálgica que se desprende das suas páginas, sem ignorarmos desde muito cedo que os protagonistas serão tocados pela tragédia em doses crescentes, à medida que se aproxima o crepúsculo do império.
É um mundo rígido, protocolar, organizado, de gestos contidos e poucas palavras, dominado por códigos masculinos e onde as mulheres perpassam apenas como sombras efémeras.
É um mundo que desfila ao som de Strauss. Um mundo em que se criam o comissário distrital Franz von Trotta, governador civil numa cidade da Boémia, e o seu filho, aluno da escola de cavalaria, fadado para a vida militar, como o avô, e já com o destino traçado. «Sentia-se em parte família dos Habsburgos, cujo poder o pai aqui representava, e pelo qual ele próprio um dia marcharia para a guerra e para a morte. (...) A melhor das mortes seria morrer por ele [imperador] ao som da Marcha de Radetzsky.» (p. 29 da edição portuguesa, com chancela da Difel e tradução de Maria Adélia Silva Melo)
O fim dos Van Trotta simboliza mais do que a irreversível decadência da coroa imperial: simboliza a extinção de uma certa ideia de Europa, mais integradora, mais cosmopolita, mais plural, mais tolerante, mais fervilhante de ideias. A Europa que vigorou durante cem anos exactos -- de 1814, ano em que Napoleão ruma ao desterro em Elba após a derrota em Leipzig, até 1914, quando começaram a soar os canhões da Grande Guerra.
«Este reino tem de acabar. Logo que o nosso imperador fechar os olhos, desmanchamo-nos em cem bocados. Os Balcãs vão ser mais poderosos do que nós. Todos os povos vão fundar os seus estadozinhos miseráveis, e até os judeus vão aclamar um rei na Palestina», vaticina uma personagem do romance, sem ilusões sobre os ventos da História. (p. 132)
Filho de pai austríaco e mãe russa, Moses Joseph Roth nasceu em 1894 em Brody, na actual Ucrânia Ocidental -- noutra das extremidades do império, onde a cultura judaica era preservada e socialmente aceite. Estudou Filosofia e Literatura Alemã na Universidade de Viena, quando «toda a cidade não era mais do que um gigantesco pátio do palácio» de Francisco José.
Ainda muito jovem, testemunhou dois acontecimentos históricos que o marcaram para sempre: a I Guerra Mundial, onde serviu como voluntário na frente oriental, e o colapso do império, que o deixaria órfão de pátria.
Em 1920, era jornalista em Berlim: ao serviço do Frankfurter Zeitung percorreu grande parte da Eurpopa. Com a ascensão de Hitler ao poder, em 1933, abandona de vez a Alemanha, acabando por instalar-se em Paris, onde morreu prematuramente em Maio de 1939, consumido pelo álcool e pela saudade do seu mundo que ruíra.
Stefan Zweig, que lhe sobreviveu menos de três anos, descreveu esse tempo desta forma bem expressiva: «Não havia país para onde se pudesse fugir, silêncio que se pudesse comprar. Sempre e em todo o lado a mão do destino nos apanhava e puxava de volta ao seu jogo insaciável.»
O êxito literário alcançado por Roth na última década de vida não lhe atenuou a mágoa provocada por uma dupla deserção: primeiro o pai, que abandonou a mãe ainda grávida e nunca o conheceu; depois a História, que lhe roubou a identidade e até grande parte da memória de infância (Brody tornou-se território da Polónia e em 1940 foi um dos palcos mais sangrentos da guerra sovieto-polaca).
Os filhos n' A Marcha de Radetzky nunca recebem manifestações de verdadeiro afecto dos pais: a comunicação entre eles processa-se através de carta ou de monossílabos. O grande progenitor da nação austríaca acaba por ser aquele monarca que parecia eterno -- figura tutelar dos povos do império e presença viva neste romance de que acaba por ser protagonista e suscita algumas das suas páginas mais brilhantes. «Não gostava de guerras -- porque sabia que as perdia -- mas gostava das coisas militares, dos jogos de guerra, dos uniformes, das paradas, dos desfiles e dos exercícios de campanha.» (p. 208) «Durante toda a sua vida tinha-se levantado quase sempre antes de o sol nascer, como o soldado se levanta sempre antes do seu superior.» (p. 211)
Também ele enviuvou cedo, como sucedeu aos Van Trotta. Também ele perdeu o filho, como virá suceder a Franz.
Francisco José e a imperatriz Sissi
Era um tempo de fronteira: nada do que veio depois seria igual.
«Naquela altura, antes da Grande Guerra (...), ainda não era indiferente o facto de um ser humano viver ou morrer. Quando alguém se apagava no bando dos terrestres, não entrava logo outro para o seu lugar, para fazer esquecer o falecido, mas ficava um vazio no lugar onde ele faltava, e as testemunhas próximas ou longínquas do morto calavam-se sempre que viam esse vazio. Quando um incêndio destruía uma casa de um bloco de uma rua, o lugar do incêndio ficava ainda durante muito tempo vazio. Porque os pedreiros trabalhavam devagar e pensativos, e os vizinhos mais próximos, assim como os transeuntes de acaso, lembravam-se, quando olhavam para o local, da forma e das paredes da casa desaparecida. Era assim naquela altura! Tudo o que crescia precisava de muito tempo para crescer; e tudo o que desaparecia precisava de muito tempo para cair no esquecimento. Mas tudo o que alguma vez tivesse existido deixava vestígios e vivia-se antigamente de recordações, como hoje em dia se vive da capacidade de esquecer rápida e forçosamente.» (p. 109)
Destinos individuais entrelaçados com o destino colectivo naqueles anos de ilusória paz que dariam lugar à mais mortífera das guerras.
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