Grandes romances (16)
FORA DOS CARRIS
O Homem que Via Passar os Comboios, de Georges Simenon
O que leva um pacato burguês de meia idade a largar família, emprego, cidade e país natal para se aventurar numa existência errante em Paris, à margem de todas as convenções sociais?
O que leva um indivíduo sem história, homem cinzento com uma vida cinzenta, a tornar-se notícia de primeira página e a ser procurado por dezenas de polícias?
Eis o ponto de partida do mais fascinante romance de Georges Simenon (1903-89), O Homem que Via Passar os Comboios.
O protagonista é Kees Popinga, quarentão residente na cidade universitária de Groninga, a maior do norte da Holanda. Casado e com dois filhos, dispõe de um respeitável emprego e habita numa confortável moradia, com «um fogão de aquecimento do modelo mais aperfeiçoado, charutos sobre a lareira e uma excelente telefonia de cerca de quatro mil francos».
Fala com fluência quatro línguas e o seu passatempo preferido é jogar xadrez. Tem carta de capitão de longo curso mas nunca se aventurou para longe da terra natal, onde o meio de locomoção mais popular é a bicicleta.
Noite após noite, contempla os comboios que desfilam bem perto, a escassos trezentos metros de casa, como se no seu íntimo sentisse um desejo difuso de partir para não voltar.
Mal ele sabe que está prestes a zarpar numa dessas carruagens que o transportará numa viagem ao mais fundo de si mesmo.
A vida de Popinga conhecerá uma reviravolta por um absurdo fatalismo que apenas o narrador omnisciente conhece nas linhas de abertura do romance, situado nos anos finais da traiçoeira década de 30, quando todo aquele enfadonho cenário estava prestes a tornar-se palco da mais devastadora das guerras: ali nenhuma existência voltaria a ser corroída pelo vírus da monotonia.
Numa certa noite de Dezembro, este exemplar funcionário de uma firma fornecedora de navios mercantes fica a saber que o patrão praticara um desfalque e se pusera em fuga, deixando a empresa arruinada. É quanto basta para o edifício de certezas inabaláveis que foi construindo ao longo de décadas se desmoronar de alto a baixo.
Nada voltará ao mesmo, nada passa a fazer sentido.
Popinga vira costas à família, abandona o lar («uma casa de primeira qualidade e uma vida de primeira qualidade») e ruma sem bagagem à estação ferroviária. Deixa de ser um mero espectador dos comboios que vão passando, símbolo da existência que se escoa.
Agora o passageiro é ele. Numa deslocação de que não regressará ileso.
Simenon -- um dos componentes do trio de belgas mais ilustres da arte popular do século XX, a par de Hergé e Jacques Brel -- era ainda um escritor jovem mas já largamente reconhecido, com 59 títulos publicados, quando começou a redigir este romance sombrio em que desvenda os abismos da natureza humana. Ancorado ao real, como mandavam os seus mestres Balzac, Stendhal, Flaubert e Zola.
Era um escritor compulsivo, capaz de concluir um livro em poucos dias, e encontrava-se num período de extraordinária criatividade em 1937, quando concebeu O Homem que Via Passar os Comboios -- o seu nono romance daquele ano -- e o escreveu em escassas semanas, como de costume, aproveitando a técnica que lhe ficara da profissão de repórter, iniciada aos 16 anos, na cidade natal, ao serviço de La Gazette de Liège.
Trabalhava sempre da mesma forma. Escrevia velozmente à mão, quase sem corrigir, e no dia seguinte passava o texto à máquina. Bastava-lhe, na maior parte das vezes, uma boa ideia inicial. Neste caso era a ruptura de um homem com o seu passado, contrariando as leis da inércia e as amarras da rotina.
«Em casa da minha mãe, ambicionava ter dinheiro, como os outros, para me divertir na cidade com os colegas; também ambicionava andar bem vestido, em vez de usar roupas feitas com os fatos velhos do meu pai. Em minha casa, ou melhor, em casa da minha mulher, invejei durante dezasseis anos os indivíduos que saem à noite sem dizer onde vão, os que vemos passar de braço dado com uma linda mulher, os que tomam comboios e vão para outro lado.» (Tradução de Gemeniano Cascais Franco para as Publicações Dom Quixote.)
Declarações de Kees Popinga que lhe saem em jeito de confissão nas cartas que vai dirigindo aos directores da imprensa de Paris, a cidade do seu refúgio após uma traumatizante escala por Amesterdão em que chega como cidadão anódino e sai na pele de um assassino.
Agora é procurado por toda a parte, o seu nome ocupa os cabeçalhos dos jornais. O quarentão anónimo torna-se enfim conhecido. E diverte-se a jogar ao gato e ao rato com a polícia, denotando a vontade de ser capturado, como se nunca perdesse a noção do seu comportamento transgressor.
Podia ser um policial de rotina, mas é tudo menos isso.
Simenon torna, neste caso, a investigação policial quase irrelevante: ocorre um homicídio, mas sabemos quem o comete e nenhum suspense surge associado a isto. Com notável intuição, o romancista deixa o seu célebre comissário Maigret ausente deste livro, embora surja em pano de fundo o comissário Lucas, nosso velho conhecido de outros romances. Seria um erro desviar o foco das atenções: aqui o protagonista é quem viola a lei e as convenções sociais, não quem é investido da autoridade para fazê-las respeitar. E pressentimos desde o início que não haverá aquilo a que se costumamos chamar "final feliz".
Perseguido em simultâneo pela polícia e pelos marginais, transformado por uma imprensa que o desconhece num "monstro" fabricado à conveniência das manchetes que só se destinam a vender papel impresso, Popinga tenta proclamar ao mundo a sua verdade, que não será escutada: «Não há então ninguém que compreenda que era "antes" que eu não estava no meu estado normal? "Antes", se tinha sede, não ousava dizê-lo, nem entrar num café. Se tinha fome, em casa de pessoas, e me ofereciam comida, murmurava por delicadeza: - Não, obrigado!»
Acossado, vadiando de bairro em bairro e pernoitando em pensões baratas, propõe-se escrever um livro sobre tudo quanto lhe sucedeu. Já tem título: "A Verdade sobre o Caso de Kees Popinga".
Mas o livro fica em branco. A verdade sem verosimilhança torna-se intransmissível.
Na intensa correspondência que mantinha à época com André Gide, Simenon questionou-o sobre a qualidade literária desta obra, editada em 1938 pela Gallimard.
Gide, futuro Nobel da Literatura, respondeu-lhe em carta datada do último dia desse ano: «O Homem que Via Passar os Comboios parece-me perfeitamente conseguido.»
Não se enganava.
Talvez ele tenha sentido -- como sucedeu decerto a muitos leitores -- uma incómoda identificação com Kees Popinga, esse indivíduo indistinguível da massa de cidadãos cumpridores de todas as normas até que um dia se aborrece a sério por estar quarenta anos a espreitar a vida do lado de fora «à maneira do miúdo pobre que tem o nariz colado à montra de uma pastelaria e vê os outros a comer os bolos».
Parte a montra e come os bolos todos de uma vez. Pode acontecer a qualquer um.
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