Grandes romances (15)
UM MAR DE LAMA
Agosto, de Rubem Fonseca
«A traição fazia parte do jogo político.»
Publicações D. Quixote, Lisboa, 1991 (p. 192)
No Inverno carioca, quando a temperatura é mais amena, o inferno do submundo torna-se quente como nunca. Assim foi pelo menos em Agosto de 1954, quando o clima político estava escaldante, o Rio de Janeiro ainda era capital federal e o presidente Getúlio Vargas vivia dias dramáticos que lhe quebravam a resistência psicológica na clausura do Palácio do Catete. As legiões de turistas que demandavam a Cidade Maravilhosa mal podiam pressentir os dramas ocultos naquele magnífico cenário de bilhete postal.
O talento de Rubem Fonseca -- e o que o torna uma voz inconfundível na literatura brasileira -- fica bem evidente nas páginas deste romance que resiste às tentações do psicologismo e a toda a sociologia de pacotilha, sempre pronta a "compreender" as motivações de pessoas e personagens. Aqui não há contemplações de espécie alguma: os factos falam por si. Temos acção ao ritmo da selva urbana, um estilo que nunca se deixa contaminar pelo lirismo e a resistência implacável do autor às mais ardilosas armadilhas do lugar-comum.
Agosto é o vertiginoso relato de 25 dias febris num Rio onde todas as paixões sórdidas andavam à solta -- nas mais diversas esferas, incluindo a política -- e que culminaria na manhã de 24 de Agosto de 1954, quando Getúlio, ainda de pijama vestido, pôs fim à vida com um tiro de revólver apontado ao coração no terceiro andar do palácio presidencial, hoje transformado em Museu da República. Quando a filha Alzira e o ministro da Justiça, Tancredo Neves (duas décadas depois eleito primeiro presidente civil brasileiro após uma longa ditadura militar), chegaram ao quarto já o chefe do Estado agonizava na cama.
Onde termina o relato histórico e começam os labirintos da ficção? O mérito de Rubem Fonseca, galardoado com o Prémio Camões em 2003, é alternar de tal maneira os fios dos dois novelos que não conseguimos desenrolá-los. Nem isso, em bom rigor, interessa. Como dizia aquele jornalista imortalizado por John Ford, «quando a lenda se torna facto, imprime-se a lenda».
Os protagonistas produzidos pela imaginação deste brasileiro filho de portugueses -- que foi advogado, polícia e professor antes de se dedicar por inteiro à escrita literária -- têm inegável autenticidade enquanto as figuras reais ganham dimensão romanesca ao cruzarem-se nesta mescla de reportagem, crónica política, inquérito policial e colagem de quadros duros de um quotidiano lunar numa cidade abraçada pelo sol.
Estamos perante um relato impiedoso de delinquência, hipocrisia e desamor que não poupa ninguém -- dos mais baixos escalões sociais à chamada classe dominante, cheia de vícios privados mal camuflados sob a fachada de virtudes públicas.
Vemos desfilar personagens memoráveis como o velho Adelino, um agricultor português analfabeto, natural de Sabrosa, acusado de um crime que não cometeu. Ou o inspector Rosalvo, que gosta de dançar boleros com prostitutas e confessa um irreprimível fascínio por mulatas devido à sua condição de «neto de português». Ou a fútil, infeliz e bela Salete, a quem o amante rico ofereceu um apartamento na Avenida Atlântica e um dia, tocada pelo remorso, procura a mãe negra, Dona Sebastiana, no mesmo morro miserável onde nasceu e de onde fugira sem olhar para trás. Ou o Turco Velho, assassino a soldo mas filho extremoso que todos os anos visita a mãe em Caxambu (Minas Gerais), onde faz prolongadas curas de águas medicinais para aliviar o fígado.
Bem-vindos, portanto, ao colorido e trágico Rio de 1954, quando nos cinemas se exibia Mogambo (com Clark Gable, Ava Gardner e Grace Kelly), os bicheiros clandestinos gratificavam esquadras policiais, generais ociosos conspiravam de manhã à noite e se popularizava a expressão «mar de lama», criada pelo jornalista Carlos Lacerda, director do diário Tribuna da Imprensa e declarado inimigo de Getúlio Vargas -- ex-ditador convertido à democracia, um populista gaúcho que a posteridade viria a consagrar como o mais amado dos presidentes brasileiros.
«Não havia isenção em parte alguma. Duas correntes facciosas e antagónicas se enfrentavam e a imprensa tomava o seu partido.» (p. 125)
A corrupção oleava os circuitos da política, o submundo do crime contaminava a hierarquia policial, o jornalismo trocava o rigor dos factos pelas paixões partidárias, os militares viviam na permanente tentação de manietar e asfixiar o legítimo poder civil. A honradez era virtude escassa e quem a praticava era apontado a dedo como bicho exótico -- desde logo a figura central do romance, o comissário Alberto Mattos, consumido por uma úlcera gástrica que o leva a beber litros de leite e a mastigar de forma compulsiva pastilhas Pepsamar. Vive sozinho num modesto apartamento, dividido entre duas mulheres com ligações perigosas e tendo como paixão mais evidente um gosto ancestral pela ópera -- com uma fixação pela ária "Uma Furtiva Lágrima", d' O Elixir do Amor.
«Essa era outra coisa desagradável de ser polícia: as pessoas quando não sentiam ódio sentiam medo dele.» (p. 17)
Mattos, que foi getuliano na infância e juventude, é afinal uma figura tão trágica como o malogrado presidente. Mas a tragédia maior -- sugere-nos o escritor nas entrelinhas -- é a de um Brasil que parece condenado a repetir os erros de sempre em cada encruzilhada do destino, como se não aprendesse nada com as lições da História.
Um Brasil também com pulsão suicida.
«Juntos, bicheiros, mães-de-santo, brigadeiros golpistas, pistoleiros de aluguel e políticos corrompidos magnetizam de tal maneira o leitor que às vezes fica difícil saber onde termina a História do Brasil e onde começa o romance. Agosto será consagrado, sem a mais remota sombra de dúvida, como uma das melhores obras do nosso tempo. E como o melhor livro de Rubem Fonseca», assinalou o crítico Fernando Morais por alturas do lançamento, em 1990. Não se equivocou: estamos perante um marco da literatura brasileira e da literatura contemporânea de expressão portuguesa. Com o autor a depurar uma escrita já revelada nos seus contos, género em que é mestre indiscutível, e em romances como O Caso Morel (1973), A Grande Arte (1983) e Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos (1988).
São quase 300 páginas escritas num cunho deliberadamente impessoal mas envolvente. Agosto decorre num ritmo frenético que acelera enquanto se intensifica a contagem decrescente rumo ao clímax da morte do presidente acossado pela conspiração militar, pelas traições nas hostes getulianas e pelas suspeitas de envolvimento de membros da escolta presidencial na tentativa de assassínio de Lacerda, à porta da sua residência na Rua Tonelero, e de que resultou a morte acidental de um major da força aérea.
À medida que nos aproximamos das páginas finais, o estilo torna-se mais seco e trepidante, a cadência intensifica-se, os diálogos são despojados como nunca, as frases encurtam-se, não sobra uma palavra supérfula.
E ficamos divididos como leitores, tal como tantas vezes sucede perante uma obra que nos emociona, nos empolga, nos arrebata: queremos atingir rapidamente o fim com a noção antecipada de que sentiremos um vazio difícil de preencher quando o desfecho chegar.
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