Grandes romances (13)
NÃO HÁ SUCESSO COMO O FRACASSO
Martin Eden, de Jack London
Até que ponto alguém se dispõe a pagar o preço da fama? Estará a integridade pessoal sujeitada a cotação na bolsa de valores? O amor só vale se for totalmente desinteressado? Pode um indivíduo fazer um pacto consigo próprio que suplante toda a força das convenções sociais? Até onde estamos dispostos a chegar na firme defesa de uma ideia?
São questões suscitadas pela leitura de Martin Eden (1909) , copioso e torrencial romance de Jack London, profundamente autobiográfico e que de algum modo funciona como testamento literário do romancista californiano -- também célebre na arte do conto -- que viveu, trabalhou, navegou e escreveu vertiginosamente, como se soubesse de antemão que teria uma vida demasiado curta para nela albergar todos os seus projectos e todos os seus sonhos. Consumido pelo álcool, afundado em dívidas, afectado por alguns problemas sérios de saúde, incapaz de se refazer do incêndio que lhe devastou a casa que acabara de construir, London viria a cometer suicídio com uma overdose de morfina em 1916, com apenas 40 anos. A sua morte foi noticiada com mais destaque na imprensa europeia do que a do imperador austríaco Francisco José, falecido um dia antes.
Deixou um riquíssimo espólio literário que não cessa de cativar leitores nos mais diversos recantos do planeta, seduzidos pelo sopro de aventura emanado das suas narrativas, com o atractivo acrescido de as ter vivido antes de escrever.
Diz-se que, no seu leito de morte, Lenine pedia que lhe lessem uns parágrafos seleccionados deste discípulo de Darwin e Nietzsche, crente no primado da força humana e na sobrevivência dos mais aptos. A rara autenticidade que se desprendia das suas páginas é um dos condimentos seguros da popularidade que conserva quase um século após o seu trágico desaparecimento.
Neste romance -- originalmente publicado em 1908, em fascículos num jornal -- é ainda mais ténue a exígua fronteira entre ficção e realidade na obra de London. O autor d' O Apelo da Selva era um cultor convicto da escola realista: só escrevia sobre aquilo que conhecia bem. Foi ardina, estivador, marinheiro, garimpeiro de ouro, pugilista, trabalhador agrícola, empregado numa lavandaria. Desceu ao mais profundo abismo da pobreza, vagabundeou sem um vintém pelos Estados Unidos, passou frio e fome, conheceu o mais feroz desamparo da condição humana.
E conheceu também o outro lado da existência tornando-se celebridade graças ao poder da sua escrita: ainda em vida foi traduzido em diversos idiomas e chegou a ser um dos mais bem pagos escritores norte-americanos. Experimentou tudo -- do mau e do bom -- numa escala desmesurada. Sem nunca perder a inquietação que lhe vinha dos confins dos genes talvez suscitada pelo estigma de ser filho de pai incógnito (London era o apelido do padrasto) e que em última análise esteve na origem tanto da sua fulgurante ascensão como do seu irreparável declínio.
De quase tudo isto nos fala este livro em que o escritor se desvenda com um fulgor confessional capaz de surpreender o leitor mais experiente. Martin Eden não se limita a ser um sucedâneo ficcional do romancista: em larga medida, Martin Eden é Jack London. Com os seus fantasmas, os seus temores, os seus anseios, os seus devaneios, a sua originalidade, o seu talento, a sua prosápia, a sua crença no individualismo mais exacerbado. Oportunidade soberana para incontáveis ajustes de contas com a chamada alta sociedade de São Francisco, com as suas convenções hipócritas e a sua mediocridade intelectual que olhava para aquele rapaz de Oakland como se fosse um zé-ninguém e só se dispôs a admiti-lo nos seus salões no momento em que ele se tornou um escritor de sucesso.
London perdoou muitas afrontas mas não esqueceu nenhuma delas, como Martin Eden demonstra.
A sua pena corrosiva não poupa ninguém: o cunhado avarento e presunçoso que prospera à frente de uma firma comercial sem lhe dar guarida quando ele mais precisa; o jovem jornalista ambicioso e sem escrúpulos que inventa declarações e as põe na sua boca para o pintar como um perigoso radical, adepto da revolução socialista; os editores gananciosos que se servem dos textos dele sem lhe pagarem.
Neste contexto, destaca a rejeição de que foi alvo por parte de Mable Applegarth, a mulher por quem se apaixonou perdidamente e que nunca foi capaz de lhe retribuir. Há nesta relação condenada à partida um jogo de simetrias que atrai o jovem mas que ela, três anos mais velha e pertencente a uma escala social superior, repudia sem rodeios: ele é pobre, rude, inculto, idealista; ela é rica, delicada, instruída, materialista.
Mable surge representada na figura de Ruth Morse, pertencente a uma poderosa família local que despreza Eden/London por não ter conta bancária e só o aceita -- tarde de mais -- quando se torna célebre graças à sua vontade férrea, em permanente desafio aos ventos do destino.
Fica bem claro, para aquela gente, que só as aparências contam.
Enfim, um retrato de corrupção moral da terra da promissão -- a América do início do século XX -- onde poucos se salvam. Uma das excepções é, curiosamente, uma humilde imigrante portuguesa chamada Maria Silva e que, apesar de ter sete filhos e trabalhar de sol a sol, trata Martin com a humanidade que outros lhe negam, alojando-o numa divisão da sua pobre casa para que o jovem não dormisse na rua.
«Maria ficou admirada por saber que ele tinha estado nos Açores, onde ela vivera até aos onze anos. E mais admirada ficou quando ele lhe disse que estivera nas ilhas havaianas, para onde ela tinha emigrado dos Açores com a família.» (Recorro à tradução de Aureliano Sampaio com data de 1973 para a editora Civilização, em que o romance surge com o título português A Paixão de Martin Eden. Há uma edição mais recente, da Antígona, com a tradução sempre recomendável de Ana Barradas.)
Ao deixar-nos o seu auto-retrato nesta obra tão impressiva que 30 anos depois da sua morte viria a ser considerada o melhor romance norte-americano jamais escrito e figura entre os cem melhores livros do século eleitos pelo Le Monde, London traça-nos também o retrato daquele início do século XX.
Este não é um dos méritos menores de Martin Eden, em que o autor antecipa com impressionante lucidez a sua dramática queda no alcoolismo (que viria a ser tema de uma das suas obras mais pungentes, John Barleycorn -- Memórias de um Alcoólico, 1913), e até o trágico desfecho da sua atribulada existência. Dando razão, antes do tempo, à frase que Bob Dylan viria a popularizar meio século depois: não há sucesso como o fracasso.
«De que vale a um homem escrever uma biblioteca inteira se perder a vida?», questiona o protagonista do romance. Como se fosse o autor a escutar o eco angustiado da própria voz.
Na vida, como nos livros, não está garantido nenhum final feliz. Disso, entre muitas outras coisas, nos fala Martin Eden. E disso sabia Jack London melhor que ninguém.
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