Grandes romances (11)
SOMOS O QUE VEMOS
O Som e a Fúria, de William Faulkner
O irreversível declínio de uma família com pergaminhos e raízes ancestrais no sul dos Estados Unidos: este é um tema que tem sido glosado inúmeras vezes na literatura norte-americana. Mas não com tanto fulgor criativo, tanta desmesura de linguagem, tanto brilho formal e tanta intensidade dramática como no magnífico O Som e a Fúria (1929), opus magnum de William Faulkner, muito incompreendida à época mas que viria a contribuir em larga medida para o distinguir em 1949 com o Prémio Nobel da Literatura. Em 1999, o jornal francês Le Monde incluiu este romance entre os cem livros fundamentais do século XX. No ano anterior, a Modern Library atribuíra-lhe o sexto lugar na lista das melhores obras de ficção escritas em língua inglesa durante o século passado.
É uma fama merecida. Raros romances conseguem ser tão originais, por um lado, e simbolizar de forma tão significativa uma larga parcela da vida colectiva dos EUA, por outro.
Americanos com origem na remota nobreza europeia, os Compson pertencem àquelas famílias que combateram na trincheira derrotada da Guerra da Secessão. Estavam no lado errado da História -- o que pretendia perpetuar o esclavagismo como instituição social. Chegara o século XX, viera a suposta aurora do progresso irrevogável, mas estas famílias permaneceram ancoradas no século XIX, contemplando as ruínas do seu mundo que desabara sem remissão. Para sempre inadaptadas, vogando como fantasmas num tempo que já não era o delas, fiéis a elos e compromissos e crenças que o novo mundo deixara de respeitar.
O Som e a Fúria é um bom exemplo de como os planos iniciais de um escritor são com frequência alterados ao sabor das contingências. Previsto como uma sucessão de contos submetidos a mote comum -- algo frequente na obra de um Hemingway ou de um Jack London, por exemplo -- evoluiu afinal para um romance cada vez mais denso, cada vez mais complexo, cada vez mais desencantado. Um romance que convoca os temas da tragédia clássica reconfigurados por um olhar contemporâneo: família, inveja, traição, avareza, racismo, alcoolismo, incesto, loucura, suicídio.
O traço mais marcante desta obra é o seu formato de espelho poliédrico: só apreendemos toda a trama a partir de uma singular arquitectura linguística, adequada ao ponto de vista de três narradores distintos através da técnica do monólogo interior.
Com a originalidade acrescida de o primeiro discurso desobedecer por completo aos imperativos formais que ajudam a descodificar as narrativas comuns. É o discurso de Benjy, rapaz aprisionado num corpo adulto devido a uma deficiência mental profunda. É através do seu olhar desprovido de referências lógicas e cronológicas que somos apresentados ao clã Compson. E logo aqui se justifica o título deste assombroso romance, extraído de um célebre solilóquio do quinto acto de Macbeth, de Shakespeare: «Life's but a walking shadow, a poor player / That struts and frets his hour upon the stage / And then is heard no more: it is a tale / Told by an idiot, full of sound and fury, / Signifying nothing.»
Somos aquilo que o nosso olhar vê.
Benji, o louco da família, tem dois irmãos, Quentin e Jason. Serão eles os narradores da segunda e da terceira parte do livro -- sempre num estilo literário adaptado à psicologia de cada um, numa brilhante demonstração das virtualidades do fluxo da consciência, recurso estilístico experimentado antes por Joyce e Virginia Woolf.
Quentin, o futuro suicida, fala-nos do remoto ano de 1910, antes de quase tudo ter acontecido, mas já com traços notórios da grave depressão que o acometerá, bem visíveis na sintaxe confusa e na gramática rarefeita. Finalista em Harvard, podia ter o mundo a seus pés. Mas saltaria num ápice do sonho ao pesadelo: «Só quando se compreende que nada nos pode ajudar -- religião, orgulho, nada -- é então que se compreende que se não precisa de ajuda alguma.» (recorro à tradução de Mário Henrique Leiria e H. Santos Carvalho para a edição da Portugália, datada de 1960; existe outra, de 1993, assinada por Ana Maria Chaves com a chancela da D.Quixote).
Jason, o mais novo e mais inclemente, fala-nos de 1928, depois de quase tudo ter acontecido. Quando a família era já uma sombra do que fora.
Há uma quarta e última parte, ironicamente com data de um Domingo de Páscoa sem o menor indício de ressurreição -- a única redigida sob o ponto de vista do convencional narrador omnisciente e que permite ligar enfim todas as pontas que ficaram soltas. E nos faz entender as razões do ódio que Jason dedica à sobrinha, também chamada Quentin. E as causas mais profundas da decadência familiar. E o mistério do desaparecimento de Candace -- a Caddy que conhecemos ainda menina, nas páginas iniciais da obra.
Caddy: ausente mas sempre presente nas obsessivas divagações alheias. Ela, que nunca nos narra nada e surge aqui apenas reflectida pelo olhar dos três irmãos, é afinal a figura central. Sem ela, não haveria O Som e a Fúria, agreste saga sulista elaborada com uma teia de vozes múltiplas e personagens inesquecíveis.
Personagens como a mãe hipocondríaca e o pai marcado pelo álcool que costumava dizer aos filhos: «Nos longos e solitários raios de luz pode ver-se Jesus a andar.» E a sábia cozinheira negra, Dilsey, durante décadas o pilar daquela família condenada à extinção. E a menina italiana de que nunca saberemos o nome nem conheceremos o destino que irrompe como estrela fugaz no longo capítulo situado em 1910, seguindo Quentin como um anjo passageiro a quem ele chama irmã. Como se aquela menina fosse Caddy e a idade da inocência tivesse regressado, iluminando com um ilusório clarão de esperança a noite mais inóspita deste mundo.
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