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Delito de Opinião

Grandes contos (21): José Cardoso Pires

Pedro Correia, 06.07.14

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Há um abismo entre a vida vivida e a vida sonhada: é isto que nos diz um dos mais ternos e amargos contos portugueses do século XX, com um título que logo pela sua originalidade nos sugere muito sobre esta enorme distância entre aquilo que se deseja e aquilo que se tem.

É uma história que funciona num cenário despojado, reduzido à mais extrema simplicidade para melhor "ir ao osso" -- expressão bem ilustrativa do estilo de José Cardoso Pires (1925-1998), um dos nossos mais notáveis prosadores no romance, no teatro, no conto e na crónica.

 

Uma Simples Flor nos Teus Cabelos Claros é uma narrativa em dois tempos: o real e o literário. Com dois pares de protagonistas. Na vida real não têm nome, sequer: apenas os conhecemos pelos diminutivos -- Quim, ele, e Lisa, ela. Vivem numa rotina cinzenta, anódina, sem horizonte nem chama. Na vida literária, pelo contrário, estão apaixonados e cheios de esperança num futuro que só pode ser brilhante -- chamam-se Paulo e Maria (poderiam ser Paulo e Virgínia, como os adolescentes na ilha deserta do clássico romance de Bernardin de Saint-Pierre), e partilham «o melhor restaurante, a melhor praia, a melhor água, o melhor tudo» do mundo.

Lisa sofre de insónias, talvez por ter entrado na menopausa. Toma pastilhas que lhe alimentam a ilusão de que um dia irá emagrecer. Fala a todo o instante dos pequenos nadas que lhe povoam um quotidiano cada vez mais insípido e vazio.

Quim usa a literatura escapista para iludir a irreversível passagem dos anos: identificado com Paulo, o herói literário, regressa aos anos da juventude, em que a paixão se mantinha acesa e todos os sonhos eram possíveis antes de a realidade chã se encarregar de os destruir.

 

A discrepância entre os dois mundos fica bem expressa neste sucinto diálogo protagonizado pelos dois esposos no leito conjugal:

«"E é bom, o livro?"

"É uma história de dois tipos apaixonados. Dois tipos novos."

"Conta, Quim. É capaz de contar a história à sua mulherzinha?"

"Ora, quase não tem que contar. É um rapaz que está na praia com uma rapariga."

"E depois? Conta, não sejas chato."

"Depois vão tomar banho. À noitinha, quando o sol está mesmo a desaparecer."

"À noitinha? Tu não estás bom da cabeça, Quim."

"Verdade, à noitinha."

"Mas isso é só nos filmes dos milionários, lá nos mares do sul. Só aí é que há banhos à noite. Ou nas piscinas, quando está tudo bêbedo."

"Não, estes não estavam bêbedos nem eram milionários."

"Eram malucos. Ou então faziam isto para armar. Não me queres convencer que acreditas numa coisa destas."

"Claro que acredito. Porque não?"»

(Jogos de Azar, 6ª edição, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1993)

 

Estão ambos na cama, mas há um muro a separá-los.

Ela fala das trivialidades do dia-a-dia, ele lê em silêncio, projectando-se nas personagens da novela, ficção literária dentro de outra ficção literária como num jogo de caixas chinesas de óbvia inspiração cinematográfica a que Cardoso Pires confere acrescida verosimilhança ao desenvolvê-la em dois estilos muito distintos: Lisa e Quim numa linguagem seca e agreste, Maria e Paulo servidos num português colorido e expressivo, quase voluptuoso. E sempre em itálico para que não o confundamos com o registo "real" nem percamos a convicção de que o mundo dos sonhos é substancialmente diferente da vida sentida e experimentada.

O escritor pertencia aliás a uma geração que tinha um discurso muito crítico em relação à chamada literatura de evasão, que aqui de algum modo parodia, contrapondo-a a uma escrita que em momento algum esqueça as «desigualdades primárias» existentes «à face da Terra», como salientava em 1963 num notável prefácio à primeira edição da colectânea de contos a que deu o título de Jogos de Azar. Um título "político", claramente, entre outros motivos porque se ocupava dos deserdados da sorte no velho Portugal salazarista, crente -- como anotou neste prefácio -- de que «o indivíduo destituído de autoridade está condenado a tropeçar a cada passo nos caprichos daqueles que a detêm como exclusivo.»

 

Pessoas que já retratara em Histórias de Amor, livro publicado em 1952 e logo apreendido pela polícia política. Cardoso Pires nunca mais o reeditou, optando por transferir vários dos contos para Jogos de Azar, incluindo este, numa versão bastante retocada.  

Pessoas condenadas não à morte mas à vida. Condenadas a uma vida estreita, à dimensão do quarto de Lisa e Quim, sem rasgo nem chama, sem ardor nem paixão, onde jamais pousará uma simples flor nos teus cabelos claros. Os cabelos de Maria. Ou, pelo menos, como os cabelos que Paulo imagina de Maria. Ou, pelo menos, como os cabelos que Quim supõe que Paulo imagina de Maria naquela inacessível praia para sempre banhada por um impossível luar.

 

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Anteriores contos desta série:

Circe, de Julio Cortázar

Natal, de Miguel Torga

Desatolado, de John Updike

O Observador de Caracóis, de Patricia Highsmith

Os Bons Serviços, de Julio Cortázar

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