Gostos
Por aqui, onde vivo, não se fala noutra coisa. Era por isso chegada a hora de me debruçar sobre esse assunto.
Debruçar é mesmo a palavra adequada. Quando um problema não se afigura claro, por vezes, convém que se mude de posição para se poder analisá-lo. E aí a gente debruça-se, o que pode sempre constituir um risco, porque tanto nos pode entrar um cisco pelo olho adentro, uma mosca pela narina acima, ou um tipo estatelar-se de bruços se estiver num local elevado e perder o equilíbrio na análise.
Qualquer uma dessas hipóteses causava-me imenso desconforto. Tomei, pois, as devidas precauções e coloquei uma máscara KN95 e uns óculos de protecção quando tratei de me concentrar no assunto.
Agora importa aqui deixar algumas ideias, que aliás não são muitas, confesso, mas que, creio, deverão ser tomadas em conta nas sugestões que vierem a ser feitas sobre uma consulta pública que anda para aí a ser muito badalada e que no futuro poderão ser tomadas em consideração pela Assembleia da República e o Governo de Portugal na hora de legislarem sobre as reacções nas redes sociais.
Já tinha ouvido falar na ideia, por sinal brilhante, de serem escrutinados pelas autoridades os "gostos" (likes) colocados pelos participantes em redes sociais, coisa que na nossa sociedade, "muito pequena", como alguém disse, onde "toda a gente se conhece" e "não é preciso as autoridades policiais investigarem", constitui uma tendência perigosa e reveladora de problemas de mentalidade e ideologia. Inicialmente desconfiei. Não percebi. Mas, como referi, se "não é preciso as autoridades policiais investigarem" é também porque as leis são muito boas, únicas e irrepetíveis em qualquer outra parte do mundo, e há boas ideias por estes lados que deverão ser consideradas. A do recurso aos "likes" para análise social, disciplinar e criminológica pelas polícias parece-me, afinal, muito razoável, pelo que desde esta manhã passei a subscrever a sugestão do nosso Secretário responsável pelo pelouro dos "likes", um quadro formado pela última administração portuguesa de Macau no rigor dos princípios então vigentes.
A sugestão, todavia, convém que seja melhorada para se evitarem confusões e se dispensarem futuras investigações, sempre morosas e caras. Deverá ser tudo escarrapachado na lei, não vá aparecer aí algum figurão a dizer que não é bem assim, a ver se escapa à bordoada.
É que não se pode simplesmente analisar os "likes" a eito. Importa introduzir algumas regras científicas que sustentem as conclusões da análise. Não só aos "likes" simples que um funcionário público ou qualquer outro indivíduo coloca nas redes sociais ao que se passa noutras jurisdições, mas a todas as reacções possíveis. Porque todas elas, dependendo da perspectiva, podem ser reveladoras de diversos graus de perigosidade da sua mentalidade e ideologia.
A minha primeira sugestão vai, pois, no sentido da criação de um catálogo de reacções, sanções, atenuantes e incentivos de carreira, ou pecuniários (estes serão mais populares), em função das reacções dos participantes nas redes sociais ao que se publica. Um catálogo tipificado às reacções dos participantes nas redes sociais, à semelhança do que acontece no direito penal com os crimes. Isso é importante para segurança de todos nós e o problema, admito, não está a ser tratado com o devido rigor por quem de direito. Tem de ficar tudo na lei. Preto no branco.
Se repararem, actualmente, temos o "like" ou gosto simples, o coração vermelho, o riso, o espanto, o choro e a ira (ou o zangado). Para este efeito são tudo "likes" em sentido lato. Ora, é preciso que não se fique pela análise do "like" simples, havendo que extrair conclusões das restantes reacções, sob pena de estarmos a atirar para cima das polícias uma investigação perfeitamente desnecessária.
Se um tipo colocar um coração vermelho nas declarações de um governante é porque aprecia o estilo deste, gosta da gravata, do fato, fascinou-lhe o conteúdo das declarações proferidas ou ficou apaixonado pelo presente que aquele ofereceu à mulher, uma senhora que em tempos violou a disciplina do partido e está agora hospedada no "Coloane Hilton" a cumprir pena?
E então se for o boneco do riso numa publicação da agência de notícias Xinhua, sobre o papel dos observadores estrangeiros nas eleições em Angola, isso quer dizer o quê? Que a notícia teve piada? Que os observadores são especialistas de stand up comedy? Ou porque a fonte foi o Dr. Marques Mendes?
Eu poderia trazer para aqui mais uma série de exemplos e situações em relação a cada um dos "likes", chamemos-lhes assim, em que muitas vezes um "like" simples acaba por corresponder a um "dislike", ou, o que é pior e deverá ser sempre evitado, a uma reacção de gozo. Tenho um amigo do Sporting, que ninguém quer lá, que coloca "likes" nas publicações do SLB e quando diz que "vamos ser campeões" nunca ninguém sabe se é o Sporting, o SLB ou o F. C. Porto, onde milita o filho. Uma confusão que dá sempre granel lá em casa.
É preciso que fique na lei que o que vai na cabeça do participante na rede social no momento em que reage à publicação também é penalizado ou louvado. Há sempre uns engraçados que colocam risos nas fotografias dos camaradas do partido. É evidente que se depois se arrependem e colocam um "like" simples ou um coração vermelho, isso deverá ser considerado uma atenuante na hora da avaliação do desempenho do funcionário público ou de qualquer residente. Mas se se voltarem a arrepender e colocarem, à terceira, o boneco irado em substituição do "like" simples, após assistirem à última conferência de imprensa sobre o controlo da pandemia, então é porque estão a precisar de ser "fulminados". Aí só há um caminho: mandá-los para a Mongólia interior ou um campo de reeducação do tipo daqueles que Michelle Bachelet visitou, onde possam desenvolver as suas competências e adoptar comportamentos constantes em matéria de reacções às publicações nas redes sociais.
Agora é hora de colocar mãos à obra e pedir a um dos cientistas da Universidade de Macau que elabore o catálogo de reacções (alguns serão crimes) atinentes às publicações nas redes sociais que deverão ficar a constar da lei. Talvez o Prof. Figueiredo Dias, como professor visitante, possa aprender alguma coisa com eles, atenta a criatividade de que os seus académicos ultimamente têm dado mostras, para propor ao Ministério da Justiça.