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Delito de Opinião

Gordon em Cartum (episódio da História do Fracasso)

Luís Naves, 13.09.14

No início de 1885, no auge do Império Britânico e da Era Vitoriana, ocorreu uma famosa derrota militar que inflamou os jornais do mundo civilizado e o coração de muitos jovens ambiciosos com sonhos de seguir a carreira das armas. O herói desta história, Charles Gordon, foi brutalmente morto e degolado no final do cerco de Cartum, mas o império viria a vingá-lo anos mais tarde, condenando ao esquecimento o vencedor da batalha.

De forma perturbadora, e apesar do contexto ser outro, certos elementos da saga de Gordon são imitados por situações do presente. O general inglês estava ao serviço do governo egípcio, liderado por uma elite de origem otomana, mas na realidade orientado do exterior, pois o Egipto era na época um protectorado inglês, embora tivesse desde 1819 o seu próprio pequeno império africano. A insustentável dívida pública egípcia era gerida pelos credores, os ingleses, que nomeavam o ministro das Finanças egípcio e controlavam todas as despesas. Este protectorado foi alargado ao exército em 1882. O Quediva do Cairo, supostamente tributário do Império Otomano, pertencia na realidade ao Império Britânico.

Entretanto, os interesses egípcios no Sudão estavam a ser contestados por uma rebelião fundamentalista islâmica chefiada por um homem chamado Mohammed Ahmed, que se reclamava descendente do Profeta e dizia ser o Mahdi (as correntes messiânicas sunitas acreditam na profecia de que haverá um enviado, sucessor de Maomé). Os Mahdistas estavam em plena Jihad (guerra santa) e estavam até a vencê-la. O Sudão encontrava-se já sob seu controlo, à excepção da capital, Cartum, cidade criada pelos egípcios na confluência do Nilo Azul e do Nilo Branco, e onde havia uma poderosa guarnição.

O cerco de Cartum, iniciado em 1884, tinha grande importância para as duas partes. As vidas paralelas de Mohammed Ahmed e Charles Gordon convergem na noite de 25 para 26 de Janeiro de 1885, quando, pressionado pela chegada iminente de um exército de resgate, o Mahdi decidiu dar o golpe final na cidade, que resistira 320 dias. Consta que não houve sobreviventes na guarnição egípcia de 7 mil homens, mas talvez essa informação seja propaganda posterior. O general Gordon tinha 52 anos, o Mahdi 44.

 

Neste episódio da História do Fracasso não há muitas versões do vencedor. Pelo contrário, os factos foram contados pelos perdedores, quase sempre de forma tendenciosa, com notáveis excepções, como é o caso de Slatin. Em 1896 foi publicado em Londres um livro, Fire and Sword in the Sudan, escrito por um oficial do exército egípcio, o barão austríaco Rudolf Slatin, que fora durante dez anos prisioneiro dos Mahdistas e que conhecera o próprio Mohammed Ahmed. Conhecido por Slatin Paxá, este oficial escapara do cativeiro com ajuda de um membro dos serviços de inteligência britânicos e conseguira regressar a segurança. As suas aventuras são sensacionais e o livro (disponível na internet) está repleto de pérolas, mas o relato vale sobretudo pela descrição desapaixonada da ascensão do Mahdi.

A rebelião no Sudão começara no início da década de 80. Pressionados pelos ingleses, os egípcios tentavam conter o tráfico de escravos e havia forte repressão das tribos mais envolvidas nesta prática, o que era o grande motivo do forte descontentamento com a péssima administração colonial.

Mohammed Ahmed era um obscuro religioso de origem humilde que, ao revoltar-se contra o seu mentor, afirmou ser descendente do Profeta. Após um período de reclusão e oração, o discípulo desprezado começou a espalhar uma doutrina purificada e fundamentalista, que atraiu numerosos seguidores. A sua mensagem de libertação engrossou o movimento religioso e, após a recusa desta comunidade em pagar impostos, ocorreu uma displicente reacção egípcia, que acabou em desastre militar. Na sequência do combate, em 1881, Mohammed Ahmed, de acordo com as profecias, declarou-se o Mahdi e nomeou quatro califas. O seu exército cresceu rapidamente e conquistou quase todo o Sudão.

Em Novembro de 1883, o Mahdi destruiu um exército considerável, comandado por oficiais europeus. A partir daí, o seu movimento triunfara. Como escreveu Winston Churchill em River War, livro onde relata a campanha do Sudão, “não sei como é que se distingue um profeta genuíno de um falso, a não ser pela medida do seu sucesso. Os triunfos do Mahdi foram, durante a sua vida, bem maiores do que aqueles do fundador da fé maometana. E a principal diferença entre a fé muçulmana ortodoxa e o mahdismo foi que o impulso original se confrontou com sistemas decadentes da governação e da sociedade, enquanto o movimento recente entrou em contacto com a civilização e a maquinaria da ciência” (*). Churchill conhecia o seu tema, pois como jovem oficial de cavalaria participou em 1896 no esmagamento do movimento mahdista ou do Império Dervixe. Este excerto de um livro que tornou famoso o jovem político inglês ainda hoje tem actualidade, podendo ser aplicado a movimentos fundamentalistas islâmicos mais recentes e que se confrontam com a modernidade e a civilização.

 

O general Gordon, representante da civilização da época e da maquinaria da ciência, era um figura lendária, soldado profissional que se distinguira na Guerra da Crimeia e depois seguira uma carreira com momentos de glória durante a rebelião Taiping, na China, ou em anteriores acções no Sudão. Gordon tinha fama comparável à das modernas estrelas rock e era a personificação das virtudes do império britânico. Por isso, estava pouco disposto a receber ordens e esse foi o seu maior problema.

Em plena Guerra Santa, as tribos sudanesas ameaçavam a capital, Cartum. Os ocidentais e a administração egípcia, com as respectivas famílias e elites nativas tinham-se concentrado na única cidade que restava sob controlo ‘civilizado’. A Inglaterra não queria meter-se num conflito tão incerto e Gordon, ao serviço do governo egípcio, mas sempre oficial britânico, foi enviado em Fevereiro de 1884 com instruções para evacuar a cidade, usando uma pequena frota de embarcações que subiam e desciam o Nilo.

Na realidade, o general decidiu desobedecer às instruções que lhe dera o Quediva do Cairo. Procedeu à evacuação de mulheres e crianças, mas ficaram em Cartum 15 mil pessoas, incluindo um forte dispositivo militar, que Gordon rapidamente verificou ser insuficiente para impedir o cerco dos Mahdistas.

O general fortificou Cartum mas não confiava nas suas tropas e recusou converter-se ao Islão (o que Slatin fizera no Darfur, para escândalo de Gordon, mas essa é outra história). Houve assim constantes deserções e traições, o entusiasmo dos soldados era mínimo e os melhores oficiais foram sendo mortos em combates no exterior, que resultaram em derrotas, redução do perímetro e perda de armas. Quase até ao final do cerco, o general Gordon podia ter evacuado Cartum, mas resistiu teimosamente, apesar de também desconfiar da população.

 

Entretanto, em Londres, o governo de William Gladstone estava sob forte pressão para enviar uma força de resgate, mas durante meses foi adiando a decisão. A opinião pública considerava esta atitude escandalosa e a própria rainha Vitória manifestou a sua indignação. Gladstone acabou por ceder. A expedição de socorro tinha dez mil homens, mas as dificuldades logísticas eram tremendas, os barcos tinham de ser operados para lá das cataratas, com correntes fortíssimas, e o contingente que progrediu pelo deserto teve forte oposição.

Os combates para retardar o exército britânico foram ferozes, mas a força que atravessara o deserto conseguiu chegar ao Nilo e um pequeno contingente embarcou em lanchas que Gordon mantinha mais a norte de Cartum. No entanto, esta força chegou à cidade apenas a 27 de Janeiro de 1885, dois depois dos dervixes a terem conquistado. Ainda havia colunas de fumo, mas era demasiado tarde.

Perante a aproximação da expedição de socorro, o Mahdi apressara-se. Cartum fora tomada de assalto em poucos minutos. Gordon ainda tentou resistir, mas em vão. Foi apanhado pelos assaltantes no pátio do palácio. Rodeado por dezenas de homens armados e excitados, perguntou “onde está o vosso chefe?”, mas a tentativa de intimidação era inútil: o general mais famoso do seu tempo foi rapidamente morto e decapitado. Depois, os rebeldes levaram a cabeça de Gordon ao Mahdi.

Os ingleses já não tinham objectivo e retiraram do Sudão, que durante uma década ficou fora do mundo civilizado. O governo Gladstone foi culpado pelo desastre. Por ter abandonado Gordon à sua sorte, o primeiro-ministro teve de se demitir. Mohammed Ahmed tinha criado o Império Dervixe, mas morreu apenas cinco meses depois do seu triunfo, vítima de febre tifóide. Dez anos mais tarde, os ingleses recuperaram o Sudão e destruíram o movimento fundamentalista. Churchill participou nessa campanha e relatou o banho de sangue em páginas memoráveis.

 

*(River War, A Reconquista do Sudão, Winston Churchill, pág. 41) 

 

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