George Floyd
Temos o privilégio masoquista, que nos dão as redes quase instantaneamente, de assistir a execuções extrajudiciais.
Não a todas, claro, nem sequer à maior parte. Apenas àquelas que são praticadas em sociedades democráticas onde o uso de telemóveis para esse efeito não acarrete riscos sérios para os cineastas amadores, ou onde sejam os próprios justiceiros fardados obrigados a filmar os seus actos, como sucede em alguns estados (ou apenas condados? Não apurei) americanos.
Os States estão a ferro e fogo por causa desta última e, como de costume, proliferam as análises profundas, quase sempre nem tanto, a elaboração de receitas para os males americanos, feita por locais e estrangeiros, e o atrelar pornográfico da indústria de causas a esta desgraça que deveria envergonhar a land of the free, home of the brave – e de facto envergonha um número crescente, que se traduz no gigantismo da parte não-violenta das manifestações.
Não vou resolver o problema da violência americana (das armas, do crime, dos gangs, das minorias violentas e segregadas, das instituições penais, seja a legislação, os tribunais, as polícias ou as prisões) porque não sei. E isso não constitui qualquer embaraço porque o problema é de tal modo complexo que não terá solução para o mês que vem, ou na próxima presidência, e certamente não a teve até agora.
A reivindicação simplista da proibição do porte de armas choca com a cultura americana, com a Constituição (numa leitura discutível, mas em boa parte inútil porque a questão não é de hermenêutica jurídica) e com a tradição do crime com arma de fogo, das quais há incontáveis milhões, o que implica, no caso de proibição, facilitar a vida a criminosos e dificultá-la a quem se quer defender.
Os gangs e as minorias (com excepção da negra, que é um caso à parte) resultam de ser a América uma terra de atracção, e ter desde sempre permitido o maior grau de liberdade cultural e religiosa das suas comunidades, com o único cimento da igualdade dos cidadãos perante a lei, a língua inglesa (esta a abrir brechas) e um patriotismo de adopção fundado na excepcionalidade americana e na consciência de um destino comum. A liberdade de ser diferente, que está na génese da América, está também na génese de um apartheid soft de culturas paralelas, unidas pela Coca-cola, as calças de ganga e a falta de maneiras à mesa, porque o país foi feito com o lúmpen de outros.
O caso dos negros é bem mais complicado por a comunidade descender de escravos e ter um longo e doloroso percurso, bem conhecido, até atingir, apenas nos anos 60, a igualdade perante a lei em todo o território, mesmo assim perdurando um rasto de desvalia factual que as políticas ingénuas de discriminação positiva, criando privilégios que despertam ressentimentos em outras comunidades, e alimentando sentimentos de entitlement na negra, muito pouco têm feito para diminuir. A isto acresce a desestruturação das famílias, os bairros problemáticos onde reina a violência, o tráfico de droga e crimes sortidos, o ensino medíocre para alunos que veem na rua o futuro que não está na escola, e uma litania de vários problemas, mais intratáveis uns que outros
A esquerda, lá como cá, costuma arrumar o problema da criminalidade debaixo da epígrafe “desigualdade”. Com razão: numa sociedade igualitarista há menos progresso material, e polícia mais eficiente porque ainda não se inventaram sociedades igualitaristas sem reforço dos poderes do Estado, e eliminação dos cidadãos. O mesmo poder que serve para destruir as oposições, estrangular a iniciativa e reprimir os que querem cometer o crime de enriquecer serve para controlar os outros. A América não tem porém essa tradição, e foi aliás por não a ter, para além de razões geo-estratégicas, que se tornou numa super-potência, dada a prodigiosa vitalidade do seu aparelho produtivo.
Não tem essa tradição mas tem outras, por exemplo a de eleger magistrados (que não sejam federais) e certos polícias (os xerifes dos saudosos westerns). E isto significa que uns e outros têm um altíssimo grau de dependência em relação à opinião pública, que se comunica aliás ao resto da estrutura policial e judiciária, mesma a nomeada, com excepção talvez dos juízes do Supremo, que o são vitaliciamente. Este sistema tem vantagens mas, no plano criminal, está longe de demonstrado que as concepções populares de justiça sejam… justas. O medo aos criminosos, a ira popular e o simplismo das reacções criam o caldo de cultura para a violência do Código Penal, a desumanidade das cadeias, a negociação de penas contra confissões, na prática extorquidas para o acusador público mostrar serviço ao eleitor, e o reforço dos poderes das polícias, que conseguiram ser legalmente inimputáveis.
Na realidade, pode-se dizer com boas razões que a América tem um sistema penal bárbaro (coisa que os americanistas, que são legião, aliás negam) porque são uma sociedade violenta, ou que o sistema penal contribui (é a minha posição, mas não sou americanista nem sofro de outras doenças infecto-contagiosas) para essa violência.
O que não se deveria dizer é que o assassinato de George Floyd foi necessariamente um acto de racismo porque o crime foi presenciado por outros agentes, dos quais pelo menos dois são de ascendência não-wasp; porque a percentagem de negros que morre às mãos da polícia é maior do que a de brancos, mas o polícia que aborda um negro sabe que a probabilidade de este ser um criminoso é muito maior do que se for um branco; e, sobretudo, porque a alegação de racismo só envenena as coisas: as polícias precisam de ter códigos de conduta que incluam sanções severas por ofensa de direitos de cidadania, que são iguais para todos. Sanções agravadas porque o polícia deve ter especiais obrigações, dado o poder de que dispõe, não especiais direitos. Protegido o indivíduo nos seus direitos, está protegida a comunidade a que pertence – o que carece de sanção são actos ilícitos, não a imaginada ou real motivação.
Finalmente: a escumalha infecta que se associou às manifestações para destruir propriedade, assaltar estabelecimentos e causar confrontos deu uma grande ajuda a Trump, que sabe perfeitamente que o grosso do eleitorado, que está em casa, não aprecia motins. Semelhante facto não me incomoda, mas infirma a tese, corrente entre nós nos meios de gente aguda, de que a direita é estúpida. A de Ventura será sem dúvida primária, por muito sucesso que se lhe atribua (o homem ainda hoje se aliviou de sabão macaco opinativo, a benefício de cowboys justicialistas) mas a esquerdista Antifa, entre nós representada pelos dementes do Bloco, é, além de estúpida, criminosa: gente que coonesta a ideia de que há boas razões para pilhagens e incêndio de casas e automóveis, em nome de uma sociedade alternativa mal explicada, não merece figurar no perímetro da respeitabilidade.
That’s all folks.