Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Galeria de horrores (II acto)

Sérgio de Almeida Correia, 18.06.21

IMG_9564.jpg

E o inevitável aconteceu. Depois do I veio o II acto

Tal como era previsível desde há um par de anos na Região Administrativa Especial de Macau, tudo se conjugava para que a situação de convivência entre os dois sistemas da República Popular da China desmoronasse. Seria apenas uma questão de tempo e de retórica.

Se o primeiro é incontrolável, ainda quando se pretende acelerar ou atrasar o seu ritmo, indiferente como sempre foi aos humores dos calendários e à vontade dos humanos, já a segunda impõe-se à força de megafone, assim amplificando a dimensão relativa do tempo e dos desígnios políticos e sociais de cada época. De certa forma, quem controla o megafone torna-se senhor do devir. De um tempo imediato.

Mais do que um resultado, a mudança é um processo, uma sucessão ordenada de actos tendentes a um fim que pode durar mais ou menos tempo a atingir-se.

Neste caso, o fim estava consagrado na Declaração Conjunta Luso-Chinesa de 1987 e na Lei Básica de Macau e visava a integração de Macau na República Popular da China, ao fim de um período de 50 anos, após a reversão da região para o titular legítimo da sua soberania.

Na prática, o que se verificou, porém, em especial desde 2017 foi uma aceleração, não do tempo, antes do processo histórico, com a inerente supressão de etapas, a qual veio acompanhada da supressão dissimulada de garantias e de uma indisfarçável pulsão autoritária e policial decorrente da criação de mecanismos de controlo e dissuasão ditados por circunstâncias externas que em nada diziam respeito à quietude da terra e das suas gentes, empenhadas desde sempre na construção de um futuro risonho, confortável e livre, à sombra da herança tutelar do passado e da boa fé que criou laços e nós capazes de resistirem a qualquer intempérie.

Não obstante os sucessivos alertas, todos os sinais foram desvalorizados pelos habituais bardos do status quo, caixeiros-viajantes alçados a diplomatas, serventuários com pose de estadista, ratazanas empresariais sempre sôfregas nos seus estômagos protuberantes e de flor na lapela sobre tecidos finos, desde a primeira hora mais preocupados em garantirem a segurança dos seus interesses e das camarilhas que os projectaram e das quais depende a sua segurança e o seu vinho do que em assegurarem o bem-estar das gentes da terra.

As notícias divulgadas esta semana relativamente à prática, agora já não disfarçada, de actos efectivos de censura na TDM, quer em relação ao programa Contraponto (paz à sua alma), quer em relação ao Telejornal, apenas vieram confirmar a mudança da linha editorial da concessionária do serviço público de rádio e televisão, antes várias vezes anunciada e sempre desmentida por força dos exercícios retóricos.

Este último acto conducente ao desmantelamento oficial do segundo sistema muito antes da data prevista, não foi em Macau ditado por quaisquer circunstâncias externas ou a prática de quaisquer actos de desafio, subversão ou secessão, que aqui nunca existiram, mas tão-só pela vontade, em que alguns sempre se esmeraram, fosse no tempo colonial ou depois dele, nos órgãos de poder, no legislativo, nas instâncias judiciais, nos negócios ou na comunicação social, em garantirem que à dobragem da cerviz, ao excesso de zelo e à paulada orientadora corresponderia sempre uma remuneração adequada, um pacote de brindes turísticos ou uns pastelinhos de massa tenra.

Daí que o desvirtuamento precoce fosse amplamente aceite e aplaudido por alguns sectores que no Terreiro do Paço, em Belém, nas Necessidades, na Praia Grande ou na fonte do Lilau, são o espelho e a vergonha da nação a que também pertenço, o que ainda assim não os coibia de todos os anos celebrarem penhoradamente Abril, rumando às cerimónias oficiais enquanto sacodem a caspa dos galões e das ombreiras e dão vivas à fraternidade universal, à amizade entre os povos e aos cambalachos que hão-de vir.

A liberdade de imprensa – vê-se agora de forma insofismável –, estava ferida de morte há muito tempo. Qualquer justificação é um atentado à inteligência de uma pessoa normal. Ainda assim não têm pejo em apresentá-la.

E muitos dos receios que anteriormente se manifestaram, alguns no próprio programa censurado durante os anos em que por lá passei, até Setembro de 2019, foram merecedores tanto da chacota como da lisonja de bufos e acomodados, ante o olhar preocupado de quem num silêncio triste e compungido via resvalar a alegria de tantas outras horas em que a incerteza, a insegurança e o infortúnio eram versos distantes de poetas esquecidos.

Quando a brisa era ainda ligeira ninguém ligou. Depois foi soprando progressivamente mais forte e desvalorizaram, porque poder-se-ia sempre fechar a janela ou acreditar que o tufão seria desviado para outras paragens enquanto se comprava a fruta à janela. Agora que a janela se partiu e não há ninguém que a conserte, posto que o tufão é incontrolável, o clarão dos relâmpagos e o ribombar dos trovões se mistura com a chuva e os silvos do vento, tudo destruindo à sua passagem, alguns preparam-se para fazer as malas, outros para convictamente se alistarem, fazendo jus ao seu mercenarismo do lado do megafone, convictos como estão na sua ilusão de que estarão a salvo numa arrecadação sem janelas da caserna que lhes distribuírem.

Restarão sempre alguns, do lado de fora, é certo, amarrados às árvores por fortes cadeados. Pelos cadeados da integridade do tempo e da história, únicos testemunhos da justiça divina.

São esses os únicos que sabem que raízes centenárias e milenares não se deixam corroer. Nem corromper. Que resistem às subidas de maré e ao mais imprevisível dos tufões. Qualquer que seja o Norte de onde sopre o vento. Sempre com a garantia de que quando aqueles passarem as cigarras e os ratos há muito terão partido.

E os pontos cardeais continuarão no mesmo sítio. Como a decência, a honradez, a seriedade.

Os bons jornalistas, os bons juízes, os bons empresários, os bons advogados também. Esses permanecerão todos no mesmo sítio. Agarrados às raízes. Como muitos outros bons profissionais.

Qualquer que seja a bússola, o martelo ou o lápis que queira guiar a sua liberdade e as circunstâncias do seu tempo.

2 comentários

Comentar post