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Delito de Opinião

Fora de série (5)

Sérgio de Almeida Correia, 19.05.16

 

O aparecimento da primeira mini-série aconteceu em 1984. Não me recordo se foi logo nesse ano que começou a passar na RTP, mas foi sem dúvida um momento marcante para quem sempre preferiu o cinema à televisão. Desconheço se todas as sequelas passaram em Portugal porque no final da década de Oitenta e durante quase uma dezena de anos, antes do final do Século XX, vivi fora de Portugal. Nessas ocasiões limitava-me a seguir a série irregularmente através das gravações que me chegavam.

Em 1980 eu fora admitido na Faculdade de Direito de Lisboa e já nessa altura uma das minhas preocupações recorrentes era o combate à corrupção, ao clientelismo político, à promiscuidade entre a política e os negócios e à forma como em Portugal se usava e abusava dessa instituição nacional que era a "cunha". O fenómeno mafioso desde sempre me interessara e alguns livros e filmes italianos e norte-americanos dos anos 60 e 70 haviam atraído a minha atenção. Quando em Itália, em Setembro de 1982, tomou posse a Segunda Comissão Anti-Máfia, depois dos homicídios de Pio La Torre e do célebre general Dalla Chiesa, presidente da Câmara de Palermo e símbolo da luta contra a Máfia siciliana, assassinado em 3 de Setembro desse ano, passei a acompanhar com mais atenção tudo o que rodeava esse combate.

Foi, pois, com particular atenção que segui e me tornei um incondicional da série italiana O Polvo, La Piovra no original. A actualidade do tema, o magnífico trabalho dos seus autores, realizadores e guionistas, onde surgiam nomes consagrados como Damiano Damiani e Sandro Petraglia, um naipe de actores de primeira água, imediatamente me agarraram aos seus episódios rodados em diversos locais (Roma, Milão, na Suiça, em Nova Iorque, etc.) mas com a maioria das cenas centradas na pequena vila siciliana de Trapani. Muito anos mais tarde quando viajei pela Sicília e percorri as estradas das suas aldeias e cidades, vendo alguns grafitti nos muros e paredes, por várias vezes me recordei de La Piovra.

A figura incontornável do Comissário Corrado Cattani, encarnada por um esplêndido Michele Placido, que fora destacado de Milão para investigar a morte do seu colega Augusto Marineo, o realismo das cenas, numa altura em que o que se passava no quotidiano se misturava com a ficção da série televisiva, algumas mulheres lindíssimas – Florinda Bolkan, na pele da Contessa Olga Camastra, mas também Barbara de Rossi, fazendo de Marquesa Rafaella, Patricia Millardet, esta na figura da magistrada Silvia Conti, Marie Lafôret, entre outras – e uma banda sonora excepcional – recordo que Riz Ortolani e Ennio Morricone foram dois dos autores – tornaram O Polvo numa série de culto em Itália e nalguns países europeus entre os quais Portugal.

Em determinada altura terá havido dificuldade de contratar actores italianos e muitos dos papéis foram desempenhados por actores franceses. Bruno Cremer, Paul Guers e François Périer foram alguns dos franceses que passaram pel'O Polvo. Na mesma altura em que a ficção tomava conta das televisões agudizava-se a luta anti-máfia. O Comissário Corrado Cattani acabaria ele próprio por ser assassinado na quarta série, sendo substituído nas quinta e sexta séries por um outro protagonista, Vittorio Mezzogiorno.

Algum tempo depois tomaria posse a Terceira Comissão Anti-Máfia que pôs em destaque as ligações entre as organizações mafiosas e algumas lojas maçónicas. Os atentados de 1992 contra os juízes Giovanni Falcone e Paolo Borselino, a operação Mani Pulite e o fim da Primeira República italiana, que conduziu à alteração das leis do financiamento partidário e à reforma dos partidos, reforçariam a importância da série televisiva quando esta se predispôs a trazer ao conhecimento de vastíssimas audiências os meandros da promiscuidade entre o crime, uma certa advocacia, a actuação de alguns polícias, os negócios da construção civil, da droga e da política, as leis do silêncio e "a moral dos imorais".

O Polvo antecipou os livros de Roberto Saviano e alertou uma boa parte da opinião pública portuguesa e europeia para a dimensão do fenómeno mafioso e as relações deste, nas diversas formas que assume, com a actividade política e os partidos políticos. Chegou a passar nos Estados Unidos da América e na Rússia, tendo sido a série italiana de maior sucesso de todos os tempos.

Para além de ter servido para entreter milhões de telespectadores durante mais de uma década e meia (em Itália terminaria em 2001), La Piovra serviu para abrir muitas consciências, completando o aspecto lúdico e ficcional com o indispensável papel formativo e pedagógico que é apanágio do bom cinema e da melhor televisão.

 

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