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Delito de Opinião

Fora de série (21)

José Maria Gui Pimentel, 11.06.16

Seinfeld – a série sobre nada, sobre tudo

 

Servindo esta rubrica para invocar uma série que nos tenha marcado durante a infância ou juventude, o normal seria escolher uma série de que fosse contemporâneo. Não é, porém, esse o caso de Seinfeld, cujo primeiro episódio foi para o ar vinte bons anos antes de eu descobrir que existia um café chamado Monk’s. Foi por isso quando o hype da série já há muito se tinha extinguido, mesmo em Portugal, que eu descobri Jerry Seinfeld – alter-ego do humorista homónimo –, George Constanza – alegadamente uma espécie de superego de Larry David, o outro criador –, Kramer – a personagem mais plana da série, mas genialmente conseguida – e Elaine, uma personagem feminina tão distante do típico cérebro feminino que só poderia mesmo ter sido criada por dois homens.

 

Desde que vi o último episódio, e ao contrário do que tende a suceder, a minha relação com a série tem vindo a estreitar-se, em lugar de se esbater. E é por isso que julgo ser uma boa candidata a figurar nesta rubrica. Com efeito, são inúmeras as situações do dia-a-dia em que dou por mim a lembrar-me de determinado episódio em que aquela mesma situação – por norma, insignificante, corriqueira até, mas recorrente – acontecia, colocando-se sobre essa mundanidade um tipo de análise minuciosa que o sentido do ridículo normalmente nos retrai de ensaiar.

 

À distância de alguns anos, houve em Seinfeld alguns elementos distintivos que desde logo me atraíram e que continuo a admirar – se é que se pode usar palavra tão carregada para uma série de espírito tão assumidamente leviano.

 

Um deles é justamente essa ligeireza, que se traduz num despretensiosismo desarmante. Pode haver série mais despretensiosa do que uma cujos criadores definem famosamente como sendo “um programa sobre nada”? É certo que uma comédia de situação (sitcom) dificilmente terá as pretensões de um Sopranos – para nos mantermos no domínio do entretenimento –, mas é muito típico tentar comprar alguma dignidade perene recorrendo a alguma dose de pedagogia. Além do mais, as séries, mesmo de comédia, têm (ou tinham, até ali) uma forte componente de “lamechice”, explorando a identificação do público com os sentimentos e as dores das personagens.

 

Nada disto acontecia em Seinfeld, cujos criadores preconizavam abertamente: “no hugging, no learning”. Seinfeld era, por isso, assumidamente leviano e anti-sentimental. Ao mesmo tempo, defini-lo como um programa sobre nada preparava o espectador para se poder falar “sobre tudo” – tudo aqui significando <aquilo que normalmente ficaria abaixo do limiar de sofisticação (já reduzido) da televisão>. Seinfeld troca, assim, o enfoque típico no relacionamento entre as personagens e na exposição dos seus sentimentos pela exploração das inconsciências das normas sociais, sobre todo o tipo de tópicos – mesmo os mais íntimos –, pela análise detalhada dos pequenos e prosaicos pormenores da rotina diária e pela exposição da interacção entre os ímpetos egoístas e futilidades das personagens, menos nobres do que outros sentimentos, mas irresistivelmente reais.  

 

Todo o tipo de situação mundana, mais ou menos íntima, era, assim, passível de ser analisada e dissecada, e de sobre ela se teorizar. Como alguém notou, é a “construção do dia-a-dia como algo antropologicamente estranho”. É a estranheza dessa análise que gera a comicidade. Até porque essa análise é assumidamente leviana e imatura e, por isso, desprovida de qualquer auto-censura.

 

Assim, às personagens é permitido proferir, à vez, as maiores enormidades ao mesmo tempo que testam os limites do aceite socialmente. Essa racionalidade, aliada à leviandade da abordagem, produz nas quatro personagens principais comportamentos imaturos, declaradamente pouco sofisticados, e com um substrato de amoralidade, cujo único freio é a noção flexível da fronteira do que é socialmente aceite.

 

Uma dimensão constantemente presente é a dificuldade das personagens em lidar com as regras que a sociedade impõe. Particularmente interessante neste aspecto é a interacção das personagens com o politicamente correcto e a sua entrada inexorável - que veio para ficar - na esfera da intimidade. Ficou-me marcada, pela sua presciência, a dificuldade inesperada de Jerry e George em convencerem o mundo de que não eram um casal gay, limitados na argumentação pela necessidade em que – eles mesmos, personagens com um toque de amoralidade –  se viam de terminar cada frase com “not that there’s anything wrong with that”. Paradoxalmente, deste modo, uma série que os criadores alardeavam como de “no learning” acaba por, socraticamente, por provocar e questionar a audiência.

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