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Delito de Opinião

Fora de série (18)

José António Abreu, 02.06.16

Decisões, decisões. Depois do Pedro Correia escolher Tudo em Família, considerei optar por MASH, outra das grandes séries cómicas norte-americanas da década de 1970, cujo episódio final, transmitido em 1981 (numa altura em que a qualidade até decaíra bastante) bateu todos os recordes de audiência (foi apenas ultrapassado em 2010, pela final do Super Bowl). Ou, já que a Ana Vidal e o José Navarro de Andrade abordaram ambos Os Pequenos Vagabundos, que tal escrever sobre Os Famosos Cinco, a série com aquele genérico em que os quatro miúdos e o cão se afastavam pelos campos? Ou ainda, no âmbito das séries de acção de qualidade duvidosa – também eu fingi ser o Ling Chung, Rui Rocha –, por que não Os Soldados da Fortuna (como todos os meus colegas, gostava do maluco, Murdoc, e não via despromoção alguma na circunstância de George Peppard ter 'evoluído' de procurar gatos com Audrey Hepburn para mascar charutos com Mr. T) ou Os Três Dukes (ah, o General Lee, voando por cima dos riachos com a bandeira da confederação no tejadilho, e os calções curtos da prima Daisy…).

Mas não. Resolvi que abordaria antes uma das séries que mais tensão me causaram na adolescência: Os Contos do Imprevisto, baseada nos pequenos concentrados de suspense e malevolência escritos por Roald Dahl. Porém, logo após a escolha, apercebi-me de que só conseguia lembrar-me da história em que um tipo apostava – contra a perda de um dedo – que o seu isqueiro acenderia à primeira tentativa dez vezes seguidas. Por entre a perturbação de não recordar mais nada, consola-me o facto de recordar perfeitamente a tensão que aquele episódio originou em mim.

E decidi então escrever sobre Fawlty Towers.

Comecemos pelo título, fabuloso trocadilho que me escapava na altura, reflectido na placa com o nome do hotel que, de episódio para episódio, ia perdendo letras ou apresentando-as por ordem incorrecta. Farty Towels foi uma criação de John Cleese e de Connie Booth, casados na altura da emissão da primeira temporada de episódios, em 1975 (na BBC; em Portugal passou mais tarde), divorciados quatro anos depois, aquando da segunda (talvez por isso, a primeira é melhor). Cleese, o mais irascível dos Monty Python, era Basil Fawlty, dono e gerente de um pequeno hotel em Torquay, a «Riviera britânica». Booth também participava na série, desempenhando o papel de Polly, a empregada. Havia ainda Prunella Scales (no papel de Sybil, a autoritária mulher de Basil) e Manuel, o empregado espanhol (já lá vamos).

A génese da série é uma piada em si mesmo. Cleese teve a ideia quando os Monty Python ficaram instalados no hotel Gleneagles, situado precisamente em Torquay, e o dono se revelou um tipo intratável, atirando um mapa a um cliente, criticando as maneiras à mesa de Terry Gilliam (o Python norte-americano das animações) e escondendo atrás de uma estrutura do jardim a pasta de Eric Idle (o Python de Always Look at the Bright Side of Life), abandonada por momentos enquanto este e Cleese aguardavam um táxi (o dono do hotel alegou recear que contivesse uma bomba). Cleese e Booth voltariam mais tarde e aprofundariam o trabalho de investigação em torno do sujeito. (Informação acessória e sinal dos esforços a que me dou ao escrever estas coisas: o Gleneagles não surge no TripAdvisor; ou já não existe ou está abaixo do nível mínimo da escala.)

Faw ty T wers é um sucesso a vários níveis. Enquanto o Flying Circus tinha um humor frequentemente estranho e erudito, Fa l y To e s operava (e ainda opera) tão bem em registos sofisticados (o ressentimento com os alemães, o desprezo pela cultura norte-americana, a ironia para com o passado colonial da Grã-Bretanha) como a níveis de percepção imediata, quase revisteira (os inúmeros momentos no limiar do slapstick, a forma como Basil tratava Manuel – mas já lá vamos). O génio estava até em conjugar os dois níveis sem mostrar costuras ou esforço aparente: o crescendo de insultos de Basil aos hóspedes alemães (iniciado por uma preocupação maníaca em garantir que ninguém mencionaria a guerra - tão maníaca que revela o desejo oposto - e culminado na explosão final em que adopta o passo de ganso – uma especialidade de Cleese) é tão eficaz para quem apanha todas as alusões como para quem (como eu, na altura da primeira emissão em Portugal) se ri essencialmente do grau de ridículo a que os esforços de Basil o sujeitam. Cleese referiu muitas vezes em entrevistas posteriores que não se pode ter pena das personagens, que é essencial levar uma situação até ao limite, e, apesar do génio de várias outras personagens que desenvolveu e interpretou, nunca terá feito isso tão bem como nesta série.

Duas notas, ainda: a faceta aparentemente tão portuguesa do tão orgulhosamente inglês Basil Fawlty e – é agora – o espanhol Manuel.

Há trinta e cinco ou quarenta anos, não pensei em nada disto, claro. Limitei-me a rir às gargalhadas, perante um razoável grau de incompreensão dos meus pais, a quem séries estrangeiras nunca atraíram por aí além. Mas, pelo menos em dois aspectos fundamentais, Basil, caricaturalmente inglês no comportamento orgulhoso, hirto, sexualmente retraído, podia afinal também ser português. O primeiro é a forma como mente e esconde coisas da mulher (é verdade que exasperante, até por ter razão muitas vezes). O segundo necessita de exemplos. Quando é preciso abrir uma porta no hotel, Basil contrata a empresa com pior reputação, por ser mais barata. Quando, motivado pelo desejo de privar com a alta sociedade, tenta impor as noites gourmet, acaba traído pelo carro, cuja manutenção descurou. Quando ouve dizer que o hotel vai receber a visita de inspectores públicos (a ASAE lá do reino), preocupa-se finalmente com aspectos que deviam ser regras de higiene do dia-a-dia mas preocupa-se ainda mais (e, oh, tão excessivamente) com identificá-los e bajulá-los. Quando faz quinze anos de casado, esquece-se da data. E, logo no início, quando questionado sobre os motivos da contratação de Manuel, admite que, muito embora ele seja pouco inteligente e não domine a língua inglesa, fica barato. Se não anda por aqui uma costela portuguesa, então as pessoas são mesmo iguais em todos os inúmeros cantinhos deste planeta. Ou os portugueses especialmente adequados a personagens de sitcom.

Manuel, finalmente. Há trinta e tal anos, eu desmanchava-me a rir com ele mas, sendo honesto, devo admitir que o encarava de forma não muito distinta daquela com que encarava o velhote careca do Benny Hill: um saco de pancada. Mas Manuel merece outra análise. Desde logo, merece que se reflicta sobre o quão politicamente incorrecto se podia ser em televisão. Hoje, uma personagem tão maltratada geraria ataques das brigadas bem-pensantes. Mais: justificar erros e dificuldades com um revirar de olhos e a observação «É de Barcelona» originaria artigos inflamados em jornais e blogues espanhóis (bom, talvez apenas nos da Catalunha). Se não acreditam, leiam alguns dos comentários aos clips existentes no Youtube. Depois, Manuel merece a admissão de que, em registo de comédia, nos é divertido assistir a uma relação de maus-tratos porque, mais cedo ou mais tarde (e não será uma boa comédia se isso não suceder), aquele que maltrata acaba pior do que o maltratado. (Uma das razões pelas quais Benny Hill já não funciona para mim é precisamente esta regra ser violada com frequência.) Finalmente, merece o carinho inerente a qualquer personagem trapalhona mas bem-intencionada e (muito importante) deferente. Fosse ele mais activo e respondão (e tinha todas as razões para o ser), talvez o achássemos irritante. Porém, não obstante Sybil Fawlty o comparar com um macaco (sim, é racista, mas, como Basil, Sybil está longe de ser um modelo de virtudes), Manuel assemelha-se mais a um cão: após cometer erros, fica, de orelhas baixas e olhar triste, à espera do castigo. Com uma vantagem (talvez surpreendente, considerando que é de Barcelona) em relação a todos os cães que até hoje encontrei: sempre vai ajudando na limpeza da casa (*). No fundo, descontando o bigode, Manuel é o ser humano ideal para se ter por perto. Em F  l y    ers ou noutro lado qualquer.

 

 

(*) Estic fent broma. M'encanta Barcelona e els barcelonins (especialment Messi).

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