Fora de série (18)
Decisões, decisões. Depois do Pedro Correia escolher Tudo em Família, considerei optar por MASH, outra das grandes séries cómicas norte-americanas da década de 1970, cujo episódio final, transmitido em 1981 (numa altura em que a qualidade até decaíra bastante) bateu todos os recordes de audiência (foi apenas ultrapassado em 2010, pela final do Super Bowl). Ou, já que a Ana Vidal e o José Navarro de Andrade abordaram ambos Os Pequenos Vagabundos, que tal escrever sobre Os Famosos Cinco, a série com aquele genérico em que os quatro miúdos e o cão se afastavam pelos campos? Ou ainda, no âmbito das séries de acção de qualidade duvidosa – também eu fingi ser o Ling Chung, Rui Rocha –, por que não Os Soldados da Fortuna (como todos os meus colegas, gostava do maluco, Murdoc, e não via despromoção alguma na circunstância de George Peppard ter 'evoluído' de procurar gatos com Audrey Hepburn para mascar charutos com Mr. T) ou Os Três Dukes (ah, o General Lee, voando por cima dos riachos com a bandeira da confederação no tejadilho, e os calções curtos da prima Daisy…).
Mas não. Resolvi que abordaria antes uma das séries que mais tensão me causaram na adolescência: Os Contos do Imprevisto, baseada nos pequenos concentrados de suspense e malevolência escritos por Roald Dahl. Porém, logo após a escolha, apercebi-me de que só conseguia lembrar-me da história em que um tipo apostava – contra a perda de um dedo – que o seu isqueiro acenderia à primeira tentativa dez vezes seguidas. Por entre a perturbação de não recordar mais nada, consola-me o facto de recordar perfeitamente a tensão que aquele episódio originou em mim.
E decidi então escrever sobre Fawlty Towers.
Comecemos pelo título, fabuloso trocadilho que me escapava na altura, reflectido na placa com o nome do hotel que, de episódio para episódio, ia perdendo letras ou apresentando-as por ordem incorrecta. Farty Towels foi uma criação de John Cleese e de Connie Booth, casados na altura da emissão da primeira temporada de episódios, em 1975 (na BBC; em Portugal passou mais tarde), divorciados quatro anos depois, aquando da segunda (talvez por isso, a primeira é melhor). Cleese, o mais irascível dos Monty Python, era Basil Fawlty, dono e gerente de um pequeno hotel em Torquay, a «Riviera britânica». Booth também participava na série, desempenhando o papel de Polly, a empregada. Havia ainda Prunella Scales (no papel de Sybil, a autoritária mulher de Basil) e Manuel, o empregado espanhol (já lá vamos).
A génese da série é uma piada em si mesmo. Cleese teve a ideia quando os Monty Python ficaram instalados no hotel Gleneagles, situado precisamente em Torquay, e o dono se revelou um tipo intratável, atirando um mapa a um cliente, criticando as maneiras à mesa de Terry Gilliam (o Python norte-americano das animações) e escondendo atrás de uma estrutura do jardim a pasta de Eric Idle (o Python de Always Look at the Bright Side of Life), abandonada por momentos enquanto este e Cleese aguardavam um táxi (o dono do hotel alegou recear que contivesse uma bomba). Cleese e Booth voltariam mais tarde e aprofundariam o trabalho de investigação em torno do sujeito. (Informação acessória e sinal dos esforços a que me dou ao escrever estas coisas: o Gleneagles não surge no TripAdvisor; ou já não existe ou está abaixo do nível mínimo da escala.)
Faw ty T wers é um sucesso a vários níveis. Enquanto o Flying Circus tinha um humor frequentemente estranho e erudito, Fa l y To e s operava (e ainda opera) tão bem em registos sofisticados (o ressentimento com os alemães, o desprezo pela cultura norte-americana, a ironia para com o passado colonial da Grã-Bretanha) como a níveis de percepção imediata, quase revisteira (os inúmeros momentos no limiar do slapstick, a forma como Basil tratava Manuel – mas já lá vamos). O génio estava até em conjugar os dois níveis sem mostrar costuras ou esforço aparente: o crescendo de insultos de Basil aos hóspedes alemães (iniciado por uma preocupação maníaca em garantir que ninguém mencionaria a guerra - tão maníaca que revela o desejo oposto - e culminado na explosão final em que adopta o passo de ganso – uma especialidade de Cleese) é tão eficaz para quem apanha todas as alusões como para quem (como eu, na altura da primeira emissão em Portugal) se ri essencialmente do grau de ridículo a que os esforços de Basil o sujeitam. Cleese referiu muitas vezes em entrevistas posteriores que não se pode ter pena das personagens, que é essencial levar uma situação até ao limite, e, apesar do génio de várias outras personagens que desenvolveu e interpretou, nunca terá feito isso tão bem como nesta série.
Duas notas, ainda: a faceta aparentemente tão portuguesa do tão orgulhosamente inglês Basil Fawlty e – é agora – o espanhol Manuel.
Há trinta e cinco ou quarenta anos, não pensei em nada disto, claro. Limitei-me a rir às gargalhadas, perante um razoável grau de incompreensão dos meus pais, a quem séries estrangeiras nunca atraíram por aí além. Mas, pelo menos em dois aspectos fundamentais, Basil, caricaturalmente inglês no comportamento orgulhoso, hirto, sexualmente retraído, podia afinal também ser português. O primeiro é a forma como mente e esconde coisas da mulher (é verdade que exasperante, até por ter razão muitas vezes). O segundo necessita de exemplos. Quando é preciso abrir uma porta no hotel, Basil contrata a empresa com pior reputação, por ser mais barata. Quando, motivado pelo desejo de privar com a alta sociedade, tenta impor as noites gourmet, acaba traído pelo carro, cuja manutenção descurou. Quando ouve dizer que o hotel vai receber a visita de inspectores públicos (a ASAE lá do reino), preocupa-se finalmente com aspectos que deviam ser regras de higiene do dia-a-dia mas preocupa-se ainda mais (e, oh, tão excessivamente) com identificá-los e bajulá-los. Quando faz quinze anos de casado, esquece-se da data. E, logo no início, quando questionado sobre os motivos da contratação de Manuel, admite que, muito embora ele seja pouco inteligente e não domine a língua inglesa, fica barato. Se não anda por aqui uma costela portuguesa, então as pessoas são mesmo iguais em todos os inúmeros cantinhos deste planeta. Ou os portugueses especialmente adequados a personagens de sitcom.
Manuel, finalmente. Há trinta e tal anos, eu desmanchava-me a rir com ele mas, sendo honesto, devo admitir que o encarava de forma não muito distinta daquela com que encarava o velhote careca do Benny Hill: um saco de pancada. Mas Manuel merece outra análise. Desde logo, merece que se reflicta sobre o quão politicamente incorrecto se podia ser em televisão. Hoje, uma personagem tão maltratada geraria ataques das brigadas bem-pensantes. Mais: justificar erros e dificuldades com um revirar de olhos e a observação «É de Barcelona» originaria artigos inflamados em jornais e blogues espanhóis (bom, talvez apenas nos da Catalunha). Se não acreditam, leiam alguns dos comentários aos clips existentes no Youtube. Depois, Manuel merece a admissão de que, em registo de comédia, nos é divertido assistir a uma relação de maus-tratos porque, mais cedo ou mais tarde (e não será uma boa comédia se isso não suceder), aquele que maltrata acaba pior do que o maltratado. (Uma das razões pelas quais Benny Hill já não funciona para mim é precisamente esta regra ser violada com frequência.) Finalmente, merece o carinho inerente a qualquer personagem trapalhona mas bem-intencionada e (muito importante) deferente. Fosse ele mais activo e respondão (e tinha todas as razões para o ser), talvez o achássemos irritante. Porém, não obstante Sybil Fawlty o comparar com um macaco (sim, é racista, mas, como Basil, Sybil está longe de ser um modelo de virtudes), Manuel assemelha-se mais a um cão: após cometer erros, fica, de orelhas baixas e olhar triste, à espera do castigo. Com uma vantagem (talvez surpreendente, considerando que é de Barcelona) em relação a todos os cães que até hoje encontrei: sempre vai ajudando na limpeza da casa (*). No fundo, descontando o bigode, Manuel é o ser humano ideal para se ter por perto. Em F l y ers ou noutro lado qualquer.
(*) Estic fent broma. M'encanta Barcelona e els barcelonins (especialment Messi).