Fora de série (14)
Até as séries começarem a disputar o cinema a sério, fenómeno bastante recente, andei um pouco alheada da ficção televisiva. Mais do que a concorrência da Internet, o que mais me afastou foi a moda do alinhamento dos enredos por temporadas, tão mais intermináveis quanto maior fosse o seu sucesso de audiências. Não me apetecia morder o isco e depois ficar presa a caprichos ficcionais ditados mais por prazos contratuais do que pelo talento dos argumentistas. Enquanto as boxes não nos vieram libertar dos horários de transmissão dos programas, salvando-nos também dos penosos intervalos para a publicidade, evitei fidelizar-me. Mas há sempre uma excepção. A última série antes da era da TV on demand que me amarrou à cadeira, fez adiar compromissos e reservar o serão, foi Os Sopranos. Até do tema do genérico eu gostava e se há coisa que eu não aprecio é rap...
A moral da máfia, em que me iniciei com a trilogia de O Padrinho, voltava a fascinar-me. James Gandolfini, no papel da sua vida, entrava-me em casa todas as semanas, tão vulnerável quanto brutal e eu, durante o tempo que durava cada episódio, suspendia de boa vontade a minha vida para viver a dele e surpreender-me com as minhas próprias contradições: como é que eu podia sentir simpatia por um assassino? Ainda por cima aquele burgesso sanguinário não fazia nada o meu tipo, só que expunha-se de uma forma... a natureza humana no que tem de mais perturbador era exposta de uma forma naquela série, que tocava as raias da pornografia.
Tecnicamente próxima da perfeição, a saga concebida por David Chase transcendia o mundo da máfia. Além das actividades da "rapaziada", acompanhávamos a evolução da família disfuncional de Tony Soprano - com uma Edie Falco a encarnar a sua mulher, Carmela, sempre maravilhosa - e as suas inesquecíveis sessões de psicoterapia, o toque de originalidade da série.
O New York Times considerou-a "provavelmente a melhor obra da cultura popular americana dos últimos 25 anos". Foi a primeira série de um canal por cabo a ser nomeada para um Emmy. Durante os oito anos em que esteve em exibição, de 1999 a 2007, foi sempre nomeada na categoria de melhor série dramática e por duas vezes ganhou o prémio. David Chase enquanto autor também foi galardoado por três vezes. Nessa categoria a série recebeu 21 nomeações além de outras tantas pelo desempenho dos seus actores, nomeadamente Gandolfini, que levou para casa três Emmys. Mas do palmarés de Os Sopranos constam toda a sorte de prémios, dos Globos de Ouro aos Guilds.
Terá o gangue da série comprado votos? Com a máfia nunca se sabe... A mim, como já revelei, sequestraram-me, amarraram-me à cadeira e... se eu tivesse aqui a psicanalista dele perguntava-lhe... mas acho que não estou errada se disser que a coisa evoluiu para algo próximo do síndroma de Estocolmo. Durante 50 minutos por semana, ali presa ao ecrã, dei comigo a relativizar ou, pior ainda, a compreender todas as malfeitorias do Tony. E que adrenalina isso me dava!
À hora de Os Sopranos não estava para ninguém. Se alguém me interrompesse, habilitava-se. Era bem capaz de levar com um tiro no meio da testa. Só por causa das coisas.